Ciência e Saúde
Cirurgia Espacial e o futuro da medicina fora do planeta Terra
Numa época em que as missões espaciais são cada vez mais longas e surge o termo ‘turismo espacial’, será que o Corpo Humano está preparado para o que o espera lá fora?
Desde cedo, o Homem demonstrou uma sede pela descoberta do que existe para além do planeta Terra. Desde a primeira viagem à Lua por Neil Armstrong, em 1969, e do lançamento da Estação Espacial Internacional (EEI), em 1998, as missões têm-se tornado cada vez mais complexas e prolongadas no tempo, ao que se junta, agora, a vontade de comercialização de viagens ao espaço por parte de empresas como a SpaceX e a Axiom.
Com isto, surge a preocupação pela saúde destas tripulações. Numa viagem além da atmosfera terrestre, o corpo humano é sujeito a condições para as quais não está fisiologicamente adaptado, como a microgravidade e a radiação.
Antes de uma missão, todos os astronautas realizam extensivos rastreios médicos. Contudo, emergências médicas e cirúrgicas também acontecem em pessoas saudáveis e podem ser exacerbadas pelo ambiente espacial (como apendicites e trauma). Estima-se que poderá ocorrer uma emergência cirúrgica a cada 2,4 anos numa missão a Marte.
A isto, junta-se a agravante da comunicação com o planeta Terra, em tempo real na EEI, mas com um atraso de 5 a 14 segundos na Lua e 10 a 40 minutos em Marte.
Assim, é essencial o conhecimento da fisiologia humana no espaço por parte da tripulação, e a sua autonomia no que toca à abordagem de patologia aguda e crónica durante a viagem.
O que acontece à fisiologia humana no espaço?
Efeitos da microgravidade
A redução da gravidade provoca diversos efeitos no corpo, que advêm da diminuição do peso dos componentes corporais e da alteração dos gradientes de pressão hidrostática, ou seja, a distribuição de fluídos.
Esses efeitos passam pela diminuição da densidade óssea, com risco de osteoporose e, consequentemente, risco acrescido de fraturas, pela menor pressão mecânica exercida sobre os ossos sustentadores de peso; hipotensão ortostática; suscetibilidade para a ocorrência de arritmias e menor massa e função cardíaca.
É também importante destacar o comum surgimento de cinetose (enjoo de movimento) espacial e desorientação, atrofia muscular, alterações do sono e performance, aparecimento da síndrome de ‘puffy face-bird legs’ (fluídos redistribuem-se das pernas para a cabeça e tórax, provocando edema facial e pernas finas) e redução nas defesas imunitárias do corpo, aumentando a suscetibilidade para infeções.
Efeitos da radiação e outros
A radiação, proveniente tanto de eventos de partículas solares, como de raios cósmicos de alta energia da galáxia, tem potenciais efeitos nocivos como a indução de cancro (com influência provada no cancro do pulmão, gastrointestinal e osteossarcoma), efeitos no sistema nervoso central, olho (risco de cataratas) e alterações genéticas, com instabilidade do crescimento celular.
O sucesso das missões poderá também ser afetado por fatores psicológicos, comuns devido ao confinamento prolongado e com influência nos componentes orgânicos.

Efeitos do espaço na fisiologia humana (Créditos: Canadian Space Agency)
O futuro da Cirurgia Espacial
Atualmente, quando existe uma emergência médica na EEI (a 400 km da Terra), o paciente é estabilizado, trazido para o planeta Terra e tratado em menos de 24 horas, não havendo problemas significativos em relação ao intervalo terapêutico. Contudo, com o aumento desse tempo para vários dias no caso da Lua (a cerca de 384 mil km) e até meses no caso de Marte (a 54,6 milhões de km), essa estratégia não é viável.
Nesse sentido, foram já vários os projetos desenvolvidos com o objetivo de testar a viabilidade de uma cirurgia no espaço.
O projeto ‘STS-90 Neurolab Shuttle’ revelou que pequenos procedimentos poderão ser viáveis. Os cuidados relativos a objetos e fluídos deverão ser redobrados: é necessária a restrição do material, com a promoção da organização, da esterilização, acessibilidade e segurança e deve primar-se pela manutenção de um campo estéril, evitando a fuga anestésica, utilizando estações de trabalho tipo câmara, ou até o próprio corpo do paciente como barreira.

Estudo do Sistema Nervoso Autónomo na missão STS-90 Neurolab (Créditos: NASA)
Para isso, deverá optar-se por cirurgias menos invasivas (endoscopia, através das cavidades internas naturais do doente, toracoscopia, laparoscopia…) ao invés de cirurgias abertas. Apesar de se acreditar que a falta de retração gravitacional dos órgãos e o comportamento flutuante dos fluídos como sangue e pus fossem impor problemas à concretização das cirurgias, projetos como o voo parabólico com o avião KC-135 modificado da National Aeronautics and Space Administration (NASA) provaram que isso não acontece devido ao mesentério elástico e à aderência dos fluídos às paredes abdominal e torácica pela tensão de superfície.
A restrição dos profissionais a realizar a cirurgia também é fundamental e deverá passar pela fixação à mesa cirúrgica pela cintura, barras para os pés, liberdade completa das mãos, entre outros.
A anestesia será mais segura se for administrada por meio intravenoso e se conferir apenas bloqueio regional/local.
Tal como no planeta Terra, onde os robôs já começam a dominar os blocos operatórios, também no espaço poderá a cirurgia robótica ser a solução para problemas como a inexperiência da tripulação.
O projeto NEEMO 7 de 2004 da NASA focou-se em missões debaixo de água com um robô controlado remotamente. As cirurgias a litíases biliar e renal foram bem-sucedidas.
Em 2024, foi realizada a primeira cirurgia em gravidade zero por um robô residente na EEI, o ‘SpaceMIRA’ (Miniaturized In Vivo Robotic Assistant), controlado remotamente a partir do Nebraska, nos Estados Unidos da América. Com 0,9 kg, o robô é pequeno e usa dois braços para simular o humano. Contudo, o atraso de 0,85 segundos é ainda relevante, principalmente no caso de uma perda hemorrágica, pelo que se deve trabalhar a autonomia destes equipamentos.

SpaceMIRA na Estação Espacial Internacional (Créditos: NASA)
Tecnologias como a impressão 3D de instrumentos cirúrgicos, substituição do vídeo endoscópico e laparoscópico por imagens em realidade virtual e estereoscopia 3D já foram testadas e parecem ser soluções exequíveis.
Contudo, o foco também deverá estar na redução do tamanho dos equipamentos e robôs, de modo a otimizar, cada vez mais, a logística e eficiência das missões.
A Space Surgery Association, fundada em 2019, consiste num grupo de clínicos, cientistas e engenheiros que congrega toda a informação adquirida até ao momento e promove a investigação nesta área.
Apesar de se conhecerem os efeitos do espaço na fisiologia normal e de serem já vários os esforços feitos no sentido da evolução do cuidado médico além da Terra, é importante descobrir ainda como se comportam patologias já conhecidas nestas condições adversas. Estamos ainda longe de garantir viagens ao espaço completamente seguras para a saúde das tripulações, mas a certeza é de que o caminho é o correto.
Artigo da autoria de Catarina Pereira. Revisão por Ana Luísa Silva.