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Cultura

“NÃO SEI GUARDAR AS COISAS MELHOR DO QUE NUM TEXTO”

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Ao entrar, as pessoas que chegavam à livraria eram acolhidas pelo presidente da direção da Unicepe, Rui Vaz Pinto. Criada em 1963 no seio de uma república de estudantes, esta cooperativa sem fins lucrativos, que está há mais de 50 anos no primeiro andar do número 128 da Praça Carlos Alberto, arranjava os chamados livros “proibidos” e hoje mantém-se ativa com encontros diversificados. Nesta livraria, em 1984, Saramago anunciou pela primeira vez “O ano da morte de Ricardo Reis”, bem como de onde havia surgido a ideia do livro.

Enquanto as cadeiras do espaço onde se iria realizar o encontro se preenchiam, houve tempo para algumas das pessoas já presentes pedirem ao autor que autografasse os livros que levavam. Mas não demorou muito até a pequena sala, decorada de livros e de pinturas da artista Natália Frias, ficar lotada.

“Uma conversa informal com perguntas” por parte dos presentes, foi o que o escritor Valter Hugo Mãe pediu do encontro e foi isso mesmo que todas as pessoas presentes testemunharam. Rui Vaz Pinto começou por introduzir a conversa fazendo referência a textos do autor convidado que recuavam até ao ano 2000. “Só comecei a escrever bem no século XXI”, disse Valter Hugo Mãe.

Em relação ao seu livro “Contos de cães e maus lobos”, o escritor referiu que “resulta de uma tentativa de me apaziguar com algumas vontades construtoras”. Assumindo ter a “síndrome do bom rapaz”, o autor referiu a necessidade que sentiu em fazer algo com essa vontade construtora, sendo que “nos meus romances, ainda que para um público mais adulto, vou aflorando essa vontade, difícil de conter, de pensar, de fazer com que nós ponderemos a sociedade de uma forma melhor, desmontemos alguns conceitos prévios, algumas convenções. Vivemos muito dentro de convenções. Convencionam-se as coisas e depois esquecemo-nos de questionar e eu preciso muito de me questionar.”

Admitindo que não sabe escrever um romance sem ser “uma tragédia pegada”, o autor referiu que tem “um fascínio pelos disfóricos e pelos trágicos”. Justifica este fascínio dizendo que é uma forma de redenção e porque, esteticamente, é a forma que o apela, caracterizando os seus romances como “extensas pietàs”. Assim, explicou que precisava de fazer algo que pudesse atingir um público mais lato, não imediatamente a um público infantil, porque diz que não sabe “genuinamente escrever para crianças”, mas que uma criança de 10 anos pudesse ler. Referiu que os textos deste livro têm uma doçura que não é muito comum encontrar-se, mas que mesmo assim, queria passar uma certa intensidade, porque “um lobo ou nos assusta ou é uma palermice”. “Temos de encontrar alguma beleza para lidar com a tragédia”, diz o autor, afirmando que o livro é uma tentativa de falar de assuntos mais difíceis aos mais novos.

O livro de contos é então um “esforço literário para que que me convença de que um texto é só benigno”, diz Mãe. O autor diz que precisou de guardar a sua energia amorosa em algum lugar e, como não sabe “guardar as coisas melhor do que num texto”, a série de textos que o livro de contos agrega tem a ver com isso. “É um livro esquisito”, diz o escritor português, mas “há uma estética que me é comum ou uma espécie de ansiedade pela poeticidade.”

Ao longo do encontro, Rui Vaz Pinto leu alguns comentários aos textos do livro do autor e foram confrontadas várias interpretações dos presentes em relação aos textos e temas do autor.

“A literatura é da dimensão das utopias.”, disse o autor, “é tudo menos ordinário e tem de atingir o patamar do que é extraordinário, é um instante de exceção.” O autor admite que “ou o texto tem uma força poética de criação da linguagem, ou não [lhe] interessa.”, assumindo-se como um mau leitor, que se aborrece facilmente e que lê muitas coisa pela metade, quando confrontado com narrativas planas, pouco poéticas, quase escritas em formas de reportagem. “Da literatura ficam frases potentes que se agarram à minha vida.”

Para além do último livro do autor, a conversa teve ainda enfoque nas referências do mesmo, como Zeca Afonso e “todos os malucos” como Valter Hugo Mãe lhes chamou, bem como na origem da sua atividade como escritor. “Preferia ouvir uma conversa suculenta do que brincar com os meus primos.” Tinha atenção às expressões, aos vocabulários, às narrativas, sobretudo das mulheres, que diz terem um quotidiano mais rico de narrativas. “As primeiras coisas que comecei a escrever eram pequenas frases que colecionava, ou eram palavras que ia listando ou frases que guardava e que não queria esquecer.” Mãe referiu que as fronteiras entre as palavras lhe eram irresistíveis e que lhe criava euforia o jogo das palavras, “as palavras como brinquedos, um brinquedo muito mais poderoso, que podia dizer respeito aos adultos”. Concluiu este tópico afirmando que “muito antes de saber o que era um poema, já tinha versos e muito antes de saber que havia romances, já tinha umas histórias e umas narrativas. Não tive escolha, já foi uma forma de ser.”

Numa tentativa de definir o peso da inspiração e do trabalho mais técnico de um escritor, Valter Hugo Mãe disse: “Sem a pulsão inicial da inspiração não temos vontade para fazer nada. A inspiração é para mim uma vontade de fazer, uma paixão por alguma coisa. Mas, genericamente, andamos todos inspirados, todos temos vontade de contar uma história. Mas escrever exige um esforço técnico, é um trabalho e com o tempo vamos desbloqueando modos. Os livros fazem-se com trabalho, com alguma disciplina mental. Quando estou a trabalhar num romance, excetuando momentos epifânicos, estou sempre à procura de elementos para esse romance, é quase uma forma de ver o mundo. Todos os meus dias são uma maneira de eu auscultar alguma coisa que tem a ver com esse livro. Não dá para deixar de ser escritor, passamos a ser e é uma espécie de necessidade quotidiana, um modo de ser.”

A conversa terminou com Mãe a explicar que os seus “livros são feitos de gente simples” e que há tendência para perceber até que ponto a vida comum e a simples sobrevivência é uma forma de ser herói, “é sobre isso que escrevo”.

Todo o encontro foi marcado por um tom de familiaridade e amizade entre os presentes, que se conheciam quase todos uns aos outros. Houve risos, momentos para falar a sério e outros mais emotivos.

O encontro terminou com a referência aos próximos eventos da Unicepe, com um cálice de vinho do porto entre amigos e a sessão de autógrafos final.