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Cultura

QUANDO SABES QUE ACABOU?

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Foi nas últimas 24 horas de 1961 que “Revolutionary Road” chegou, pela primeira vez, às prateleiras das livrarias. O primeiro romance do autor norte-americano Richard Yates acompanha um período turbulento das vidas de April e Frank Wheeler, um casal de classe média americana. 47 anos depois, em 2008, Kate Winslet e Leonardo DiCaprio deram vida a estas personagens num filme homónimo realizado por  Sam Mendes.

Os Wheeler são, aparentemente, um casal excecional. Têm dois filhos e vivem numa bela casa nos subúrbios de Connecticut, em Revolutionary Road. Não obstante o estilo de vida tradicional aconselhado e aprovado pela sociedade da época, a realidade em que os Wheeler vivem está longe de ser aquela que eles inicialmente idealizaram. April falhou em construir a carreira de atriz que ambicionava e para a qual estudou. Frank tem um emprego que é bem remunerado, mas terrivelmente aborrecido. Entregues à rotina, ao conformismo e à desilusão, por entre discussões expressam o desânimo que sentem pelo modo como vivem.

Fotografia: Still do filme “Revolutionary Road”. Cinematografia por Roger Deakins.

No entanto, April decide travar a crescente decadência não só da sua relação mas também da sua vida com a solução ideal. April sugere a Frank que se mudem para Paris, um lugar onde este já esteve e que considera ser o único onde vale a pena voltar, pois, no seu entendimento, lá é possível viver e sentir verdadeiramente. Ademais, Frank teria a oportunidade de descobrir o que quer verdadeiramente fazer da sua vida e, assim, parar de desperdiçar o seu tempo num emprego que não suporta.

April apercebe-se de que perderam a sua excecionalidade quando se renderam aos padrões da sociedade, ao contentarem-se com uma simples e insignifcante vida nos subúrbios. Movida pelo desejo de fugir à infelicidade, ao vazio e à desesperança, April consegue fazer o marido acreditar que é possível fazer mais das suas vidas e que não é por terem trinta anos e dois filhos que perderam o direito de lutar por uma existência significativa e da qual se orgulhem.

Fotografia: Still do filme “Revolutionary Road”. Cinematografia por Roger Deakins.

Por outro lado, no filme “Blue Valentine” (2010), de Derek Cianfrance, os protagonistas Cindy e Dean (interpretados por Michelle Williams e Ryan Gosling) são um casal que não parece conhecer qualquer esperança. O filme é entrecortado com constantes analepses ao período em que o casal se conheceu e se apaixonou, o que contribui para que a narrativa principal – aquela em que o casal, no presente, parece incapaz de se entender – se torne mais penosa. Apesar das constantes demonstrações de amor e da dedicação do marido, Cindy revela-se frustrada e parece incapaz de ser feliz ao lado dele e da filha. Insatisfeita com a sua própria vida e com aquela que Dean escolheu para si, Cindy é alguém que se arrasta num casamento onde o amor é unilateral.

Fotografia: Still do filme “Blue Valentine”. Cinematografia por Andrij Parekh.

Embora as linhas temporais dos filmes sejam distantes, o assunto em ambos tematizado é atemporal. April e Frank julgam-se superiores por terem a ousadia de seguirem o sonho de construírem uma vida num lugar idílico, conduzidos pela crença de que, onde vivem, ninguém é capaz de ser verdadeiramente feliz. Incompreendidos por todos que conhecem, que os julgam loucos, April e Frank mergulham cada vez mais fundo na ideia de que são superiores e mais interessantes que todos esses. De facto, toda essa incompreensão parece fomentar-lhes o ego e o pensamento de que são um casal singular, à frente do seu tempo.

“If being crazy means – living life as if it matters, then I don’t care if we’re completely insane. Do you?”

A descoberta, contudo, de que April está grávida – e a sua intenção de abortar – e a promoção que é oferecida a Frank no trabalho vêm destabilizar e questionar as derradeiras intenções do casal. Se, por um lado, não são capazes de manter um terceiro filho em Paris, ficar significa, por outro, render-se uma outra vez a um estilo de vida que desprezam. Mais ainda, torna-se-lhes impossível contornar a realidade de que a excecionalidade que tanto apregoavam não passava de um mero incentivo que davam a si próprios para se convencerem de que eram capazes de desempenhar tal mudança nas suas vidas. Iguais aos outros e sem um sonho que os vinculava, April e Frank, ainda que juntos, não se poderiam sentir mais afastados e sozinhos.

Fotografia: Still do filme “Revolutionary Road”. Cinematografia por Roger Deakins.

April não quer um terceiro filho e muito menos quer que isso seja um impedimento para saírem do país. A Frank perturba-lhe que a sua mulher ouse sequer pensar em abortar. Na sua mente, o ideal é aceitar a promoção do emprego que detesta e criar um filho que não desejava num lugar que também não suporta. Frank é mais propício a conformar-se com a realidade, algo que April encara como covardia, dando mote a inúmeras discussões entre o casal.

Já Dean não parece incomodado por ter sacrificado qualquer hipótese de construção de uma carreira para que pudesse ser o marido e pai ideal: presente e com muito amor para dar; amor esse apenas recebido com agrado pela filha Frankie. Cindy, por sua vez, é incapaz de se entregar e se deixar envolver pelo carinho de Dean.

Cindy e Dean poderiam constituir um daqueles tipos de casais a que April e Frank se julgavam superiores: um casal onde o amor não é recíproco ou sem aspirações para o futuro; um casal unido por um tempo já finado e que se arrasta no conformismo. E ainda que, realmente, Cindy e Dean o sejam, a relação de ambos parece mais verdadeira que a de April e Frank, um casal aparentemente formidável aos olhos alheios mas que, na verdade, só conseguiu escapar por breves momentos à decadência por se submeterem a uma ilusão. Quando April, em particular, é obrigada a constatar a realidade de que ela e Frank nada têm de especiais, todo o seu amor por ele parece desaparecer. April torna-se incapaz de se conectar com alguém que se contenta com aquela vida por desejar mais para si.

“Blue Valentine” não pretende muito. O filme acompanha o casal quando se apaixona e quando atravessa uma grave crise; crise essa que não pode ser entendida como o resultado do fim do amor entre ambos. Bastante pelo contrário, não restam dúvidas de que Dean continua a amar Cindy e ainda luta, incessantemente, pelo seu amor, apesar da rejeição.

Inspirado no divórcio dos pais do realizador Derek Cianfrance, o filme pretende ilustrar o modo como uma relação começa e termina e, assim, comprovar que, por vezes, não está ao nosso alcance garantir a sobrevivência de uma relação, por mais que queiramos.

Fotografia: Still do filme “Blue Valentine”. Cinematografia por Andrij Parekh.

A longa-metragem de Sam Mendes comprova, por seu turno, como os sonhos e os desejos individuais desempenham um papel fundamental na existência de cada um e do quão devastador pode ser se prosseguirmos as nossas vidas ignorando-os deliberadamente, quer seja pelo medo de dar um salto no escuro ou por nos sentirmos acorrentados a algo ou alguém que nos impede de avançar.

Essencialmente, a visualização destes dois filmes deixa-nos com a ideia bem presente na memória de que não é saudável desviar o olhar das nossas vontades e que, por mais que se tente, é difícil acreditar na existência de um “somos um”.