Cultura
Sobre um livro que gritou comigo – (In)cógnito
O quão confortáveis estão com vocês mesmos?
Hesitamos tanto ser íntimos com a pessoa com quem vamos para a cama todos os dias. A rotina faz-nos ganhar o vício das respostas, um pensar mecânico que é mais fácil de digerir. Por isso não se esquecem conversas que nos relembram do que é o desconforto, porque não há nada que nos obrigue a estar mais presente que o incómodo. Quando foi a última vez que sentimos o chão por debaixo dos nossos próprios pés?
Foram essas as provocações com que me atingiu o (In)cógnito – Poesia, Arte e o Entretanto. Livro bruto, mas empurrões fazem bem de vez em quando. Afinal, é nesses momentos em que passo a prestar atenção para onde estou a pôr os pés. Escrito por Luciano Pinto dos Santos e ilustrado por Tomás Ornelas, este projeto é o que resulta de duas pessoas que sabem falar como amigos e como criadores.

A cobertura fotográfica esteve à responsabilidade da equipa do Seviço de Imagem e Comunicação da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, a quem agradeço toda a predisposição. Só posso descrever a iniciativa da Faculdade em realizar um evento cultural, de alunos para alunos, como refrescante.
Os coautores são estudantes a licenciarem-se em Física que, acontece, têm um gosto pelos ritmos da poesia e pela arte visual sem regra. Publicaram em março deste ano pela Poesia Impossível. Colaborar foi para eles natural, já que os dois encontram, nas palavras de um e nas imagens do outro, uma mesma essência. Captá-la sem discuti-la seria raptar-lhe o sentido.
Ouvir.
A sessão de apresentação, que teve lugar no dia 12 do mês passado nas instalações da biblioteca da FCUP, criou, de entre o ruído branco de estudantes a arrastarem-se em exames por fazer, um debate sem qualquer ponto final. Mas acredito que os diálogos que se assumem como inacabados são aqueles que mais constroem, e estas conversas “(in)cógnitas” são tremendamente estimulantes. À conta delas, apercebi-me o quanto há em nós um fascínio pelo “Entretanto”.
Quantas vezes nos sentimos alérgicos aos silêncios? Ensardenhados no autocarro ou em filas de supermercado e sentimo-nos figuras fúteis, cães à roda à procura da própria cauda com a leve esperança que isso acelere o relógio. A repetição zanga até mesmo aos mais calmos da espécie e a impaciência também é uma epidemia.
Esses tempos vazios são os tempos do (In)cógnito. Estava à procura de algum alívio que me tirasse da própria cabeça, mas só me empurraram mais lá para dentro.
Apresentam-se como uma “resposta a um mundo tão cheio de barulho e aceleração”, que não responde – ataca e desconcerta qualquer um que se ache um observador passivo. Arte desconcertante, caótica, elétrica, por vezes, víscera. Como é que se atrevem? A ofensa desta poesia agressiva provou-se um desconforto construtivo e instrutivo. Não mata, mas mói e constrói. O leitor que se voluntarie a ser perturbado por estes versos vai se encontrar a explorar a própria consciência. Estes dois compositores de silêncios insurdecedores em formato de livro divertem-se em provocar esse estado, o que não me surpreende ao saber que estamos a falar de pessoas que lêem o Siddartha de Hermann Hesse e o Neuromancer de W. Gibson nas horas vagas.
No evento sobre o lançamento, o Tomás vindicou que «narrativas vendem, já não se ouvem». A propósito disso, consigo dizer, a sorrir, que esta gritou comigo.
Gritar.
Ao mesmo tempo em que acabava de perguntar ao Luciano e ao Tomás o que pensavam que podia ter sido o (In)cógnito se calhasse não ser um livro, soube que esta pergunta caiu oca. Ambos falam do projeto como “criatura”. Enquanto conversávamos os 3 e eu folheva o livro, há procura da página certa da minha passagem preferida, senti-me não a ler mas a interagir com a poesia. O impacto dos versos não está na sua expressão mas sim na interpretação de que dela se tira. Ri-me quando se referiram a estas interações como “dança xamânica”, na realização de que o absurdo que me estavam a oferecer é se calhar o rótulo mais justo para a liberdade encontrada no processo criativo que alguma vez vou encontrar.
E por isso falamos, e por isso discutimos sem saber o que se discute, e é nesse ato de partilha onde encontramos o prazer da leitura. Os coautores não gostam do palco da autoria e acredito que seja por isso que também fazem o leitor entrar em cena. Os 5 sentidos estão em jogo nesta leitura (“escadas íngremes e estranhamente afiadas” (p. 86) deu-me vertigens e senti uma guinada no pé esquerdo…). O sujeito poético atreve-se a usar a segunda pessoa, e confesso que houve certas alturas em que quase naturalmente lhe comecei a responder.
Acordar.
Fizeram-me gostar mais do “Entretanto”. Esse entremeios e entretempos que é tudo e nada, as tais esperas nas filas para pagar. Numa realidade de pretos e brancos, obrigaram-me a experimentar viver nos cinzentos.
O texto fala, mas se falasse, acho que me chamaria de insurportável por todas as vezes que questionei o que lia. Como é que o luto tem forma? Como é que os ares têm sabor, a neve branca tem cheiro, como é que falas se parecem a chá líquido e como é que escadas cortam? E a resposta a isso tudo é porque as palavras respiram neste livro. Resposta tão absurda quanto as perguntas, que me apanharam de surpresa, e passei a sentir-me aconchegada nestas conversas desconfortáveis. Claro que o ar tem sabor e a pedra pode ser silenciosa; porque o cheiro a casa pode trazer em nós doçura ou deixar-nos amargos, e as pedras de um muro mudam, se o que nela vemos é a ausência de quem já lá não está sentado.
O apelo é atrevermo-nos nós a ler o desconcertante, feito por quem nos desafia a ler ao contrário. Explorem o desconfortável, mas divirtam-se no entretanto, porque lá porque os olhos param de crescer não quer dizer que o nosso olhar se resigne a ficar quieto.
Deixo o site da editora, se quiserem vocês mesmos perturbar os vossos silêncios com a compra do livro, e o instagram onde o Tomás partilha o seu portfólio, inclusive alguma da sua escrita.
https://www.atlanticbookshop.pt/poesia/incognito-poesia-arte-e-o-entretanto
https://www.instagram.com/stolenamorosa?utm_source=ig_web_button_share_sheet&igsh=ZDNlZDc0MzIxNw==

Foto que me foi enviada pelo Luciano, da autoria de alguns amigos que, para recordação, quiseram eternizar momentos da sessão. Deixo a minha nota de agradecimento aos dois pelo tempo que tiveram a conversar comigo, e pelo espaço de partilha que criaram. Encontrei no vosso «brutalismo elegante» uma honestidade crua reconfortante.
