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Artigo de Opinião

NO LIMBO ENTRE A DESERTIFICAÇÃO E A VIVENDA: EPOPEIA PORTUENSE

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A identidade reporta-se mistificada por uma bruma que, embora vulgarizando-a, despe-a do seu propósito, do seu espírito resiliente contra uma actualidade desconfortante e moralmente desnorteada. Árduo será descrever esse manto: é acessível a cada um, daí o fenómeno da vulgarização; todavia, a sua verdadeira extensão, bem como as suas ramificações genéticas, perduram como uma incógnita.
Assiste-se ao desmembramento dos laços históricos das diversas estirpes que populam a terra, nunca a desconfiança entre vizinhos luziu tanto – a gentrificação, em boa verdade, é meramente corolário deste processo obsceno de destipização artística das nações. Leiloar (leia-se: prostituir) a cultura e os costumes, reconduzindo-os a uma feição kitsch da sua anterior plenitude, somente é admissível numa sociedade que voluntariamente abdicou da sua identidade.
Já Joseph de Maistre, contemporâneo dos sabres de Robespierre, argumentou que “cada nação tem o governo que merece”. Será fútil debater a veracidade da afirmação no momento em que foi proferida, tópico que a poucos assiste: mas não será tal constatação especialmente lapidar nos dias democráticos que correm? Admito: a decadência política e a perda de zelo das instituições são rebentos do empobrecimento cultural e ético do povo respectivo. Desconheço qualquer crise política que não corresponda – eis uma constante humana – a uma crise cultural. Vou mais longe e reconheço que o agnosticismo valorativo (próprio da sociedade aberta) potencia a desfiguração e consequente quebra da ordem democrática consagrada. Aparenta que a democracia, após triunfar sobre o despotismo, encolhe-se e, saciando entretenimento, trinca a própria cauda; puro Ouroboros político.
A identidade somente é compreensível mediante recíproca análise do seu antónimo. A virtude da pertença logra reconhecimento quando escasseia, e a sua pureza atesta-se quando contrastada com a tristeza flácida do cimento e do alcatrão. Advogo que o cataclismo das bússolas sociais é sempre – sem excepção, saliento – produzido e comercializado nas cidades (misantropicamente, B. Calhoun). Os anjos são inerentemente pastoris.
Nem tropeçaremos na falácia das “identidades múltiplas”. A coabitação entre culturas e credos levará (digamos: ouroboricamente) à sua inevitável extinção; o que restará será um limbo entre terras incógnitas, incapaz de se associar culturalmente aos seus anciões. Posição contrária é utópica. Neste sentido, louvo a posição de Pessoa quando este refere que “a humanidade não existe sociologicamente, não existe perante a civilização (…) Só existem nações, não existe humanidade”. Pois, existe uma ligação metafísica entre dois membros da mesma nação, consubstanciando-se num passado, num trajecto e numa filosofia comum, que não tem presença entre dois “cidadãos do mundo” – estes são completos desconhecidos, e qualquer suposta ligação entre estes é uma clara abstração sem realidade. A pretensa superioridade moral dos que militam a favor de tese contrária, os tais internacionalistas cujo fuzilamento Pessoa aprovava, é cómica: parafraseando Nietzsche, “vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e a vossa solicitude exprime-se com belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é apenas o vosso mau amor por vós próprios”. Mutatis mutandi…
Acredito que esta exposição é fundamental para uma correcta e refinada análise do fenómeno da gentrificação e da consequente perda de identidade da cidade do Porto.
Não existe cidade sem população; de facto, a identidade daquela é, concomitantemente, o modo de viver, as aspirações, os anseios e os ânimos do seu substrato populacional. Como acima explanado, uma cidade cosmopolita – que valsa ao ritmo do “cool”, do “hot” e demais jingoísmos anglo-saxónicos – encontra-se despido do seu Dasein, antes procurando por versos existencialistas nos espólios da cultura que subjugou. Como se percebe, esse mesmo cosmopolitismo é incompatível com uma população permanente; pior ainda, talvez aquele veja nos autóctones uma fonte de diversão barata.
Esta entartung – na sua tradução literal: degeneração – do modo como encaramos (e aceitamos!) a aragem portuense; do seu quase obsoleto romantismo à demência do neoliberalismo. Como nós abdicamos da sombra da copada faia de Dinis e Ortigão e a trocamos pelo bafo da esterilidade ianque, erguem-se os familiares oligopólios sobre as ruínas lacrimosas da tradição e da modéstia. E, branqueando esta realidade que a ninguém é ficção, o caviar dos caciques obra a favor da construção de um Porto orientado para o exterior, que se perfuma das fragrâncias mortalmente dionisíacas do outro lado do Atlântico, prometendo o progresso, o investimento e a vacina contra a estagnação económica. Em troca, somente se exige que a calçada seja alienada ao quilo – e paulatinamente se chega à perda da originalidade e da autenticidade, blasfémicas num mundo estandardizado e globalizado. Pior ainda: a modernidade circumcisadora do costume torna-se, ela própria (ainda que impropriamente), costumeira; diante esta judiaria social o patetismo inocente de muitos tenta normalizá-la e trazê-la para o quotidiano dos últimos portugueses portuenses. Onde outrora o comércio local prosseguia a sua actividade, descortinam-se agora as McDonalds, os Burger Kings, as múltiplas hamburgarias, as Starbucks e a mesquinhez do Airbnb – que restará, indago, ao empreendedor português senão a periferia e a oclusão nas transversais?
Em 1871, Antero de Quental dirigia-se aos povos ibéricos admitindo que “pelo caminho da ignorância, da opressão e da miséria chega-se naturalmente, chega-se fatalmente, à depravação dos costumes (…) Nos grandes, a corrupção faustosa da vida de corte, onde os reis são os primeiros a dar o exemplo do vício, da brutalidade, do adultério”. Discursando no século XIX, a sapiência do poeta ponta-delgadense estende-se às últimas linhas das Parcas.
A imóvel pantanosidade dos governantes locais é evidente. Exalta-se o crescimento económico e louva-se um Douro poliglota. Todavia: a que custo? Para os latifundiários urbanos – uma minoria já privilegiada -, a especulação imobiliária nunca trouxe tanta fortuna; para os usufrutuários, estes pequenos comerciantes que desenharam a beleza do Porto, as rendas sobem na mesma proporção que a usura dos seus senhorios. O mesmo se diga acerca da mocidade académica, forçada a suportar os preços exorbitantes. Sem estes nem aqueles, a jóia do Norte – epicentro de tanta genialidade – almejará o retorno a um estado de maior simplicidade e sossego.
A sociedade de risco não se coaduna com o esoterismo portuense: este reclama a emoção e a paixão, enquanto aquela exigirá que toda a vitalidade e memória se torne numa comodidade burguesa apta para o estupro (Adorno) e que toda a construção implique, simultaneamente, destruição (Schumpeter). Reconheço que é este o fenómeno responsável pela deturpação do modo de vida portuense: por um lado, a comercialização da Invicta, todo o seu glamour lascivo, acarreta a sua vulgarização, parecendo que a cidade desmembrou-se das suas raízes; por outro lado, a inadestrável expansão turística e todos os seus efeitos difusos – a inflação dos preços e das rendas, a menorização dos habitantes, o desgoverno urbanístico… – são as adagas que penetram o próprio âmago do Porto.
Resta à juventude a emigração em massa, o abandono das ruas que viram os seus antepassados florescer. Diz-se, frisa-se, sublinha-se: o turismo cria emprego. Mas que tipo? O precário, o mal remunerado e o iliterado; quando muito, voltamos à apanha do algodão. Enquanto as restantes nações promovem o desenvolvimento tecnológico e industrial, representando o turismo uma riqueza comedida, Portugal opta por apresentar aos letrados a servitude; acaba-se o curso para prosseguir a carreira como condutor de tuk-tuks ou empregado de mesa – quem pode perscruta um salário digno no exterior, só para volvidos uma ou duas gerações a classe política alertar para a falta de licenciados. Um vício sempre inquinou a boa fé dos portugueses modernos: a complacência patológica e a ausência de originalidade. Em tempos pretéritos, a portugalidade expandia-se mundialmente, superava os meus tórridos infernos – depois da idade áurea: ao jugo dos espanhóis seguiu-se a servidão fáctica aos ingleses. Primeiro, Portugal abdicou das ambições imperialistas e da sua coragem, retornando timidamente ao berço lusitano; pouco a pouco a sua relevância eclipsara-se. Segundo, Portugal (seguindo o conselho dos barões britânicos, nos termos do Tratado de Methuen) negou a industrialização, privilegiando a manufactura agrária, as estradas rupestres, o papismo e o atraso cultural.
Agora – rectius, desde há muito – Portugal aconchega-se aos joelhos do seu amo, e este num ato de troço, embora mascarado de benevolência, atira-lhe moedas. Poderei estar a referir-me ao americano, ao tecnocrata de Bruxelas ou ao turista decadente: temo que permanecerá uma incógnita, mas de qualquer forma, para o efeito, não vejo necessidade de os autonomizar.
No ideário de Morus, a sua narração conta que foi um português que descobriu a ilha da Utopia; também foi esta raça que destroçou os preconceitos medievais e uniu ambos os pólos da humanidade sob o mesmo estandarte de Cristo. É lamentável e historicamente obsceno que um povo íntimo com a autarquia, os forais e a liberdade nomeou o trilho de ser catamito da pederastia internacional como preferível! Por outras palavras: a nossa decadência sempre adveio de uma soberania débil – e não será o turismo que nos guiará ao pódio do desenvolvimento.
Da Sé canoniza-se o Porto vanguardista: a incerteza crónica dos últimos habitantes, gentrificados num purgatório entre as estrelas e o tecto, a indiferença e leviandade perante a ordem constitucional (isto é, o direito à habitação – artigo 65º), o arrepio salarial – também em opróbrio à Lei Fundamental – na hotelaria e restauração, o ataque de cavalaria do alojamento local, negócio fiscalmente duvidoso, a proliferação em massa do franchising globalista e, congenitamente (recorde-se Schumpeter), a ruína do comércio local, a incapacidade dos governantes locais de pensar a longo prazo, a desatenção perante as restantes indústrias e em relação a uma juventude ambiciosa e virtuosa mas abandonada ao fado da emigração, a especulação imobiliária e o seu otimismo ilusório, a ampla discriminação pecuniária contra os portugueses, fenómeno majestático e por todos testemunhado, o provincianismo na sua fase terminal, todos esses estrangeirismos que perturbam o jazigo de Eça, a lástima visual de Souto de Moura, a perda da identidade e a submissão cega aos cárceres do cosmopolitismo sem raízes, o romantismo que forjou o Porto escoa morbidamente das catedrais e dos monumentos até ao estuário e daí, despedindo-se das ninfas de Camões, evapora-se sem aparente retorno, cenário tão fúnebre mas tão ignorado pela generalidade da sociedade civil.
Diz-se que a cidade é de quem a ocupa (ilegalmente); não perfilho tal radicalismo antijurídico e reducionista, que na verdade miscigena-se com os comentários de tias solteiras e demais motins senis nas redes sociais. Antes, inscrevo-me numa posição organicista: a cidade pertence àqueles que a entendem, cujo sangue flui incessantemente pela sua canalização, cuja alma espraia-se pelas vielas e as pulverizam de sentido e comunidade…
Projecto que, a esta latitude argumentativa, chegou-se à altura de fazer a quadratura do círculo. A perda da identidade do Porto – irmão da gentrificação da sua população – é um fenómeno por muitos discutido, aliás admitido, mas raramente compreendido em grande parte devido à hipocrisia dos cronistas e eruditos. Admita-se: poucos deles abraçaram a folia portuense, visível no facto de dedicaram os devaneios aos aspectos económico-sociais em desprezo do verdadeiro problema – que é uma questão primariamente cultural. Parece até que esta casta, como que eximindo-se do fardo de Kipling, distanciou-se da natividade; e, mesmo assim, estes chauffeurs da americanização acham-se filhos de Moisés. Maior barbárie não é possível.
Não há Porto sem portuenses (perdoe-me o emprego do genérico), contudo os verdadeiros portuenses já estão em fase caquéctica. Ao terceiro milénio sobrará o anacronismo e a antítese parvónica entre o passado e a modernidade: o dialecto de gueto, os hábitos cariocas, a melodia abissínia, as danças tribais e o jazz nova-iorquino – seguindo Jung, meros homónimos – ceifaram a cultura europeia e todas as suas sinfonias, sendo o Porto mais um cadáver atirado para uma vala comum. Enfim, não se pode falar da gentrificação, da perda da identidade e das rendas monopolistas sem se debater esta questão fulcral, caso contrário a opinião (ou seja: a opinião pública) peca pela incompletude e pela reciclagem.
Também não devemos esperar uma mudança no destino sórdido se as mentalidades permanecerem petrificadas; progressivamente o Porto murcha, e em breve será a utopia dos centros comerciais, da diversão nocturna low-cost e dos T0s. Considero-me, finalizada a exposição, um pessimista ao estilo de Spengler.
Uma última menção a Antero de Quental sumarizará a crise: “deste mundo brilhante, criado pelo génio peninsular na sua livre expansão, passamos quase sem transição para um mundo escuro, inerte, pobre, ininteligente e meio desconhecido (…) Em tão curto período era impossível caminhar mais rapidamente no caminho da perdição”.