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Artigo de Opinião

Vermelho Revolução

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No decorrer da atual campanha eleitoral para a presidência da República Portuguesa, os debates entre as pessoas candidatas acenderam ideias, reflexões e posições. Se, por um lado, assistimos ao diálogo e esclarecimento necessários sobre os pontos que diferem as diversas candidaturas, por outro, deparamos pronunciações menos civilizadas e limitadas do ponto de vista da argumentação e linguagem. Elas surgiram, claro, do candidato André Ventura, que desventurado se vai baseando em sucessivos ataques de mesquinhez severa, onde tropeça desengonçadamente em valores éticos e democráticos. Esta postura pouco elegante e sapiente para alguém que se diz tão experiente e sabedor, desafia os próprios limites do discernimento e da dignidade. A prova disso é a mobilização de estratégias de comunicação política que envolvem insultos, ameaças e incitação ao ódio. Ódio contra pessoas ciganas, negras, islâmicas, imigrantes, refugiadas, desempregadas, pessoas da comunidade LGBTIA+, mulheres. Munido de um programa político do tempo das cavernas, o candidato continua a alimentar o seu discurso e a sua postura política com hostilidade e ofensivas, que pretendem oprimir, silenciar e invisibilizar.

Foi precisamente pelos comentários difamatórios que André Ventura dirigiu à candidata Marisa Matias, que surgiu o movimento de solidariedade #VermelhoEmBelem. Não é com insultos, preconceitos e outras elocuções odiosas que se debate e faz política. Contudo, é assim que joga o candidato do Chega, que claramente, e como qualquer outra pessoa que se amedronte com expressões de liberdade e diversidade, exalta a sua obsessão pela perseguição e culpabilização, colocando umas pessoas contra as outras. Se a retórica do candidato já havia causado polémica pelo seu posicionamento austero e discriminatório relativamente a alguns grupos vulneráveis da sociedade, no confronto com as candidatas e os candidatos à presidência da República confirmou o seu profundo desrespeito pelo debate político reto, construtivo e democrático.

O batom vermelho nos lábios representa muito mais do que aquilo que parece. Ele é um símbolo histórico, social, cultural, político de afirmação e emancipação feminina, tão temida e censurada pelos homens ao longo da história da humanidade. Não apenas os lábios pintados de vermelho, mas a maquilhagem feminina representou ao longo de muitos anos o desejo de as mulheres romperem com a sua invisibilidade, com o seu papel servil reduzido à reprodução e à vida doméstica. O batom vermelho passou a ter uma carga simbólica maior associada à reivindicação das mulheres pelo seu direito à participação na vida social, cultural e política. Durante séculos as mulheres foram vistas como pessoas inferiores, que deviam ser dominadas e submissas aos homens, ideias influenciadas também pelo poder das crenças judaico-cristã e católica. Por causa disto, os lábios pintados de vermelho foram em tempos considerados uma blasfémia e uma expressão que desobedecia a moral e os bons costumes. Aos olhos dos mais conservadores, uma mulher queria-se recatada, passiva e obediente, fácil de ser controlada pelo poder masculino, que receava que a sua independência e libertação pudesse ameaçar a sua autoridade. E este controlo e domínio ainda continuam a assombrar a nossa sociedade nos dias de hoje, no século XXI, através do ódio e da violência contra as mulheres – da violência doméstica, da violência e escravidão sexual, do tráfico de mulheres, da mutilação genital feminina, da coerção reprodutiva, da violência obstétrica, etc.

Ao longo da história da luta pela liberdade e independência feminina, inúmeras mulheres foram presas, intimidadas e assassinadas pelo sistema e pela cultura patriarcal que as oprimia e que ainda as oprime. Tudo por uma questão de justiça, igualdade e dignidade. As mulheres passaram a compreender que determinados aspetos das suas vidas pessoais eram profundamente politizados e que as estruturas de poder eram sexistas, e por isso discriminatórias. Era necessária uma rutura, uma revolução!

As próprias sufragistas no final do século XIX e no início do século XX usaram batom vermelho nos lábios simbolicamente como forma de desafiar uma sociedade dominada por homens, que se negava a reconhecer o direito ao voto e à participação ativa política e social das mulheres. Em outros momentos da história assistimos também a manifestações de resistência contra o estigma e a ideia de inferioridade e vassalagem, nomeadamente no contexto da ascensão de regimes fascistas na Europa, na primeira metade do século XX, não muito longe. Nesta época, em que anos de luta feminina e feminista foi, muitas vezes, revogada pela repressão e por poderes sombrios, o batom vermelho nos lábios era uma arma que procurava quebrar o cinzento tirânico. Mais recentemente, no Chile, em novembro de 2019, milhares de mulheres saíram à rua com vendas pretas nos olhos e lábios pintados de vermelho, em um protesto marcante contra a violência sexual e o femicídio. O slogan era: “O violador és tu”.

Permaneça vigilante quem pensa que direitos e valores como a liberdade, a igualdade e a justiça estão garantidos. “A liberdade é uma luta constante”, apela a ativista Angela Davis, alertando para que não nos distraiamos com futilidades e nos mantenhamos unidas e unidos contra o ódio e os ataques à liberdade e democracia. E a liberdade tanto envolve amor, respeito, igualdade, justiça social, cooperação, como também podermos escolher usar batom vermelho, vestir uma saia curta, um vestido ou umas calças sem sermos julgadas ou estereotipadas por isso.

Como um cravo vermelho na mão, o batom vermelho nos lábios é revolução e luta pela igualdade. E esta é uma luta séria, como acentua a candidata Marisa Matias: “As mulheres não são coisas de brincar. As mulheres são gente a lutar!”

Quando um comentário misógino alimenta um amplo movimento solidário de mulheres e homens contra o machismo e pela afirmação democrática, é sinal de que a esperança e a solidariedade andam aí. A luta pela igualdade é uma luta que incorpora muitas lutas pelos direitos humanos, que poderá começar por “retocarmos o batom e darmos uma lição.”

Ana Garcia