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Artigo de Opinião

Vamos falar sobre touradas

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Neste artigo, o meu foco vai para um dos temas que gera mais debate entre a sociedade, as touradas. Desde o século dezanove que se discute este tópico, tendo ganho maior atenção no passado recente. Antes de apresentar os principais argumentos sobre a temática, começo por me posicionar sobre as corridas de touros. Na minha ótica, são uma demonstração de incivilidade. Um espetáculo que se alimenta da dor e sofrimento de um animal enquanto uma arena aplaude as bandarilhas espetados no dorso de um touro. São uma demonstração de atraso, numa sociedade que se quer desenvolvida.

Alguém contra a abolição das touradas, seja ou não aficionado, iria ler as minhas considerações iniciais e descrevê-las-ia como simplistas e falsas. Iria afirmar que não refletem o verdadeiro propósito do que se passa nas praças de touros.

 “As touradas não têm como objetivo o sofrimento do animal, representam o combate da força contra a inteligência, são uma manifestação de admiração pela coragem e resiliência do humano ao enfrentar um animal combativo como o touro, são uma expressão de arte numa arena”

Bom, podem vir com as metáforas e frases bonitas que quiserem, a verdade é que ninguém a favor das touradas pode negar que, numa corrida de touros, se provoca stress e sofrimento a um animal. Independentemente ou não de ser esse o objetivo, é esse o resultado.

“Mas a dor e o sofrimento do touro são reduzidos pela adrenalina na arena, o animal não fica exposto à dor, graças às suas reações hormonais”

Confesso que este argumento, para alguém apanhado desprevenido, é dos mais eficazes na defesa das touradas. É muitas vezes utilizado, e baseia-se em estudos científicos a que, por qualquer razão, nunca tivemos acesso. Vamos clarificar uma coisa, não há qualquer estudo científico reconhecido que prove que o touro não sofre numa tourada e que é “totalmente anestesiado”. O touro bravo (raça de touro utlizada nas touradas) é um animal senciente, estando exposto, não só à dor, mas também ao stress e ao medo, desde o momento em que é colocado no transporte para a arena ao momento que entra no matadouro após a tourada (salvo raras exceções onde o touro não é levado para o matadouro). No final deste texto, deixo o título de um artigo científico, reconhecido e referenciado, sobre as reações físicas e psicológicos que ocorrem no touro, antes e durante a tourada.

“A sociedade portuguesa é livre e democrática. Quem não gosta, é livre de não gostar e de não ir às touradas, mas deve respeitar a liberdade de quem gosta. A abolição das touradas é uma forma de totalitarismo. Eu não posso proibir algo só porque não gosto.”

É fácil perceber que este argumento é dos mais desonestos e absurdos. O grande problema com as touradas é que, uma das partes, que é aquela que acabará perfurada por arpões, não foi, por motivos óbvios, consultada. O touro não teve a possibilidade de escolher ser ou não espetado com bandarilhas.  Trata-se de defender um animal que não pode evitar o seu destino, os toureiros não estão só a decidir a sua liberdade, mas sim o destino do touro. Intervir na defesa desde animal não representa, logicamente, nenhuma forma de totalitarismo.

«As corridas de touros fazem parte da identidade portuguesa, são cultura. Não devemos abolir as nossas tradições mais antigas, isso era desrespeitar os valores portugueses.»

Negar que as touradas são cultura parece-me absurdo. Claro que fazem parte da cultura portuguesa. Não me parece é que esse estatuto seja suficiente para justificar a sua existência. Quantos exemplos de práticas que faziam parte da cultura nacional foram abolidas? Vamos continuar a fazer sofrer um animal só porque é cultura? A cultura adapta-se ao progresso da civilização. Uma sociedade pode deixar de se rever em certo tipo de práticas. Os valores mudam. A cultura não é estática.

“O touro bravo só existe enquanto existirem touradas. É graças às corridas de touros que a espécie não entra em extinção. Além do mais, os touros vivem com qualidade nos primeiros quatro anos de vida”

Portanto, vamos criar um animal que, independentemente de viver livre nas ganadarias durante quatro anos, vai, inevitavelmente, acabar perfurado por arpões, terminando a sua vida, sujeito a um espetáculo que se alimenta, em parte, do seu sofrimento, com o único motivo de ele não ser extinto. Vamos proteger este animal, causando-lhe sofrimento e elevados níveis de stress, que provocam alterações físicas e psicológicas, mas é tudo justificável porque ele viveu feliz antes e assim não acaba extinto. Esta lógica de proteção de espécies é, de facto, um caso de estudo.

“Se as corridas de touros acabassem, milhares de atividades ligadas à tauromaquia acabariam. Muita gente iria deixar de ter rendimentos, especialmente no interior do nosso país. Desde a ganadaria ao transporte dos animais, o desemprego iria aumentar.”

Faz-me sempre muita confusão o argumento económico a sustentar uma prática com o grau de violência das corridas de touros. Portanto, é justificável manter um espetáculo que tem como consequência o sofrimento de uma espécie, porque existem profissões ligadas a esta atividade? Acho que por mais voltas que se dê a esta questão, acaba sempre por se resumir à seguinte interrogação: É aceitável, numa sociedade civilizada e com ética, uma prática como esta? Eu considero que não.

Quanto à questão das profissões, deixo só duas notas aqui que me parecem relevantes. Em primeiro lugar, uma parte substancial das atividades ligadas à tauromaquia não geram rendimentos. São voluntárias, portanto não resultariam em perdas. Outra parte substancial das atividades, não acabariam com as touradas, seriam apenas reduzidas. Exemplo disso, são as atividades ligadas à criação dos touros bravos. Muitas vezes, os criadores de animais não criam apenas a raça do touro de lide. Também extraem rendimentos dos outros animais.

Posto isto, é claro que algumas profissões iriam ser afetadas. Acho extremamente necessário procurar uma solução para as pessoas visadas, desde a sua alocação para outro tipo de atividade ou até mesmo garantir algum apoio mais direto do Estado. Sei que a alocação de pessoas a outras atividades é mais fácil no papel do que na prática. No entanto, continuo a achar que os custos de oportunidade decorrentes da abolição das corridas de touros não são suficientes para justificar esta prática.

Mas não há outra solução? Não há outra alternativa à abolição das touradas?

A resposta é sim, há alternativas. Resta é perceber se estas alternativas seriam populares entre os amantes de touradas.

Uma das alternativas é a substituição dos arpões por velcro. O touro estaria revestido também por velcro. Desta forma, não haveria a perfuração do animal e conseguir-se-ia manter grande parte do espetáculo. O touro não sofreria com os arpões e não haveria sangue, tornando as touradas um espetáculo muito menos medieval.

Muitos aficionados argumentam que isso não seria respeitar a tradição do espetáculo

Aproveito para lembrar que as touradas têm estado em constante mudança ao longo dos tempos. Se as quisessem manter exatamente como começaram, não cortariam os chifres ao touro, por exemplo. A verdade é que, com o avançar dos tempos, as touradas passaram por momentos de adaptação. Foi em 1921 que se proibiu a morte do touro na arena, o que ainda acontece em Espanha. Dito isto, a corrida de touros nunca foi uma tradição estática na cultura portuguesa. Quando alguns aficionados argumentam que a alternativa do velcro iria retirar toda a emoção às touradas, percebemos realmente que uma das fontes de prazer neste espetáculo é a perfuração do animal….

É justo dizer que, entre os adeptos das touradas, nem todos são tão radicais, sendo esta alternativa do velcro bem-vinda por alguns.

O propósito deste artigo é contribuir para o debate sobre as touradas. É verdade que já existem muitos debates sobre este tema. No entanto, continuo a achar relevante a discussão, visto que parece ainda dividir muitos portugueses. Acredito que, futuramente, as touradas deixarão de existir tal como as conhecemos devido à natural evolução da sociedade. Até lá, é necessário continuar a trazer este tópico ao debate.

Artigo científico supramencionado: “Quality of death in fighting bulls during bullfights: neurobiology and physiological responses ” https://www.mdpi.com/2076-2615/11/10/2820

Artigo da autoria de António Lourenço Cerdeira