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Artigo de Opinião

Karl Marx pode ser muito mais do que imaginas

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No aniversário da sua morte, Karl Marx foi essencialmente relembrado pela sua influência no plano económico e no plano político. Tal não poderia deixar de ser, tendo em conta o impacto que tiveram e ainda têm quer a análise de Marx aos princípios da economia clássica liberal, quer a resposta política na forma do marxismo e do (no entender do filósofo) inevitável caminho para o comunismo. No entanto, pouco ou nada se falou da filosofia de Marx em si, e do impacto holístico que a mesma pode ter.

Como é possível deduzir na maioria das suas obras e deduzir mais a fundo em A Ideologia Alemã (obra em conjunto com o seu companheiro de sempre, Friedrich Engels), a base do pensamento marxista é a filosofia alemã da época. Marx vai, por isso, começar por beber de Georg Friedrich Hegel, nomeadamente da dialética (à tese inicial contrapõe-se uma antítese e daí resulta a síntese) e dos estádios evolutivos da História. No entanto, quando surge Ludwig Feuerbach, também ele influenciado por Hegel, surge também o essencial contributo do materialismo. Se Hegel valorizava a ideia acima da matéria e o geist como comando da realidade concreta, algo que influenciou extremamente os filósofos alemães contemporâneos (e não só), Feuerbach foi pioneiro na concepção de que a matéria preside às ideias e de que o ser humano é real e vive no mundo material, embora de forma mais contemplativa do que social.

Marx vai fazer a síntese daquilo que considera as maiores potencialidades de Hegel e Feuerbach e, daqui, nasce o Materialismo Dialético. A matéria preside às ideias e ao espírito, mas o Homem é um ser social, em interação com o objeto, e transforma-o constantemente, numa relação dialética que visa satisfazer as necessidades humanas, dentro de relações de exploração que são também elas dialéticas (o que nos leva ao Materialismo Histórico, outra das teses centrais do marxismo para a interpretação das sociedades). Naturalmente, a aplicação do materialismo dialético ocorre sobretudo na análise social e económica e no ativismo político marxista/comunista, mas aquilo que é, pelo menos, a influência deste pensamento pode abrir muitos horizontes, alguns dos quais anteriormente abertos e agora de novo fechados.

Nos últimos anos, todo o debate político, ideológico e social está toldado de idealismo e, em alguns casos, de essencialismo. O debate está marcado por um confronto entre o bem e o mal, entre a virtude e a imoralidade. A discussão sobre a Guerra na Ucrânia transformou-se num talk show sobre modos de vida no qual quem colocar questões sobre a NATO ou os EUA é putinista, o debate sobre as eleições brasileiras demonstra que quase 50% da população é má pessoa e o feminismo radical (refiro-me à linha teórica, não à caricatura misógina do feminismo aguerrido) acredita que as pessoas com pénis são em si um problema, o que, de resto, é extremamente trans-excludente. Mas até a nível mais individual e situacional estamos impregnados de idealismo. Criamos o nosso próprio dicionário e a nossa própria lei moral, e quem ousar dizer o que não está no primeiro ou vai contra a segunda, independentemente do seu contexto social, cultural ou relacional, é feio, porco e mau. E ai de quem ouse questionar.

Nós estamos impregnados deste obstáculo epistemológico, por vezes quase transformado em essencialismo, ao mesmo tempo que estamos impregnados de condicionantes e de socialização, até mesmo desde que nascemos. A nossa visão sobre nós próprios e sobre o meio começa logo na infância, na socialização primária e nos seus mecanismos. A nossa visão sobre o outro e sobre o mundo depende não só da continuação dessa socialização, mas também da institucionalização da mesma no Ensino e, como diriam Samuel Bowles e Herbert Gintis, do currículo oculto adjacente a esse Ensino, ou da posição do indivíduo no seu campo de disputas de capitais antes e depois dessas disputas, ou, regressando a uma perspetiva marxiana, da posição do indivíduo ou grupo de indivíduos na infraestrutura económica e do impacto desse constrangimento nas superestruturas política, cultural, moral e jurídica.

Trocando em miúdos: perante uma pessoa, um grupo de pessoas, um representante de um Estado, etc., a dizer algo que colide com as nossas crenças e ideias, estamos automaticamente perante um herege ou um inimigo? Ou deveremos, antes do veredito final, analisar friamente as condições materiais em jogo, os constrangimentos estruturais e societais, a eventual alienação, a posição nas lutas de capitais/de classes, podendo até, a partir daí, chegar-se à conclusão de que estamos perante alguém que vai ao encontro de bastantes dessas crenças?

A esfera pública de debate está impregnada de idealismo, “infantilismo” (expropriei a Lenin) e julgamentos precipitados. O ativismo político passa pelo mesmo, incluindo entre aqueles que tanto batem no peito pelos princípios de Marx e Engels. E as nossas relações sociais, a nível pessoal e situacional, idem. Somos cada vez menos sujeitos, cada vez menos objetos, o que nos rodeia é cada vez menos matéria, e é tudo cada vez mais um mar de ideias e de espíritos. Concordando mais ou menos com a doutrina marxista na economia ou na política, considero que este contributo filosófico tem, ou deve ter, um papel cada vez mais central. A este nível, precisamos de mais Karl Marx, e de menos Walt Disney.

Artigo da autoria de Vasco Castro Pereira

Conteúdo multimédia da autoria de Inês Aleixo

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