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Crítica

Pode um urinol ser arte?

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Em 1917, Marcel Duchamp pegou num urinol, assinou-o e colocou-o em exposição… como uma obra de arte. O nome desta peça infame é “A Fonte”. É certo que o objectivo de Duchamp era criticar alguma arte que então surgia: afinal, não vale tudo, nem tudo pode ser arte. O mundo artístico, porém, interpretou o seu gesto precisamente como mostrando o contrário: tudo — até um urinol! — pode ser arte. Assim, independentemente da sua intenção, Duchamp abriu uma porta.

Mas, afinal, o que é a arte? Não poucas vezes começamos a discutir “se isto ou aquilo é X” antes de discutirmos “o que é X”. Por exemplo, todos já vimos gente a discutir se o melhor filme será Do Céu caiu uma Estrela ou High School Musical 3 — um olhar atento, porém, demonstra que não estão sequer a falar da mesma coisa. A conversa seria muito mais produtiva (e muito menos acesa) se discutissem “o que é um bom filme”. O mesmo se passa com a arte! Antes de discutirmos se A Fonte é uma obra de arte ou não, temos de perceber o que é a arte.

 

Para o fazer, vou propor os olhos de um filósofo medieval. O seu nome é Tomás de Aquino. São Tomás de Aquino, que viveu no século XIII, e que escreveu muitos livros, nunca escreveu um sobre o que é a arte, ou como apreciar um quadro. Nunca o fez, não porque não soubesse o suficiente do assunto, mas simplesmente porque o tema não era um assunto. Ainda assim, podemos tirar dos seus textos muito que nos ajuda a compreender melhor o que é a arte.

A arte é, antes de mais, “a virtude do intelecto prático que rege o fazer”. Calma, já vou explicar!

  1.  Uma “virtude” é uma “disposição estável para o bem”. Pense o leitor naquelas coisas que normalmente chamamos virtudes: a coragem, a justiça, a fortaleza, a temperança, etc. O que são estas coisas? São capacidades estáveis de uma pessoa! Uma pessoa corajosa está de tal maneira disposta (preparada) que consegue, se quiser, agir de maneira corajosa. E agir de maneira corajosa é algo bom! Uma virtude distingue-se de duas coisas: primeiro, de um vício, que é como uma disposição estável para o mal — como a pessoa mentirosa, que está viciada em mentir —; segundo, de uma disposição que não é estável — como a pessoa medricas que fez um gesto corajoso. Ora, a arte é uma capacidade deste género!
  2. Uma virtude é do “intelecto” porque não é da vontade. Se uma virtude é uma disposição estável para agir bem, então devemos recordar-nos de que há ações cuja raiz é a vontade — salvar uma donzela, comer de forma moderada, etc. —, mas também há ações cuja raiz é o intelecto — conhecer mitocôndrias, escrever bons trabalhos, etc. A arte, diz-nos Tomás de Aquino, não é uma virtude da vontade (“Eu quero fazer um bom quadro!”), mas sim do intelecto (“Eu conheço e sei fazer um bom quadro!”).
  3. Dentro do intelecto, os antigos distinguiam o intelecto especulativo — aquele que… bem, especula — e o intelecto “prático”. No fundo, o intelecto especulativo é aquele que conhece a verdade, enquanto o intelecto prático é aquele que faz, ou pratica, a verdade. Um exemplo de uma virtude o intelecto especulativo seria a ciência, que procura conhecer o mundo (ou seja, pegar de algum modo na verdade que está no mundo e metê-la dentro da cabeça). Já a arte é uma virtude que procura exteriorizar a verdade que temos dentro da cabeça.
  4. Por fim, São Tomás diz que a arte “rege o fazer”. Isto porque há outra virtude do intelecto prático — a prudência — que rege o agir. Quer isto dizer que, enquanto a prudência me diz como é que, com as minhas acções, eu posso praticar a verdade, ou viver segundo a verdade (i.e., conduzir uma vida moral), a arte diz-me como é que eu posso fazer, ou produzir, coisas que sejam de acordo com aquilo que tenho em mente.

Como o leitor há-de ter reparado, então, há muitas coisas que são arte e que nós hoje não lhe damos esse estatuto. Fazer uma demonstração matemática, por exemplo, é fazer ou produzir algo — sim, na Idade Média, a Aritmética e a Lógica eram chamadas artes! Cozinhar um bolo também é fazer ou produzir algo — sim, também a culinária é uma arte. Tal como fazer uma cadeira ou uma mesa — sim, daí o nome “artesão”, que vem de “arte”. Ainda hoje todas estas coisas podem ser chamadas arte, se considerarmos aquela distinção, ligeiramente mais técnica, entre “belas-artes” e “artes úteis”. Uma obra de arte útil — como um bolo, uma cadeira ou uma demonstração matemática — é uma obra de arte que “serve para alguma coisa”, como um bolo serve para comer, uma demonstração para conhecer alguma coisa e uma cadeira para nos sentarmos. Já uma obra de bela-arte — como um quadro ou uma música — não servem para nada, ou seja, servem simplesmente para serem contemplados. Enquanto numa cadeira procuro uma utilidade, num quadro procuro beleza.

É claro que há algumas artes que estão no limite destas duas categorias. Pensemos, por exemplo, na arquitetura. O arquiteto faz obras que devem ser úteis ou belas? Não me vou meter agora nessa discussão, mas nada parece impedir que faça das duas coisas. Esta distinção entre artes úteis e belas-artes, de facto, não é assim tão fundamental: todos os seres humanos desejam beleza e, por isso, até o cozinheiro, ao fazer um bolo, preferirá fazer um bolo bonito.

De facto, os medievais não tinham esta distinção. Eles distinguiam as artes em artes liberais e artes servis. Algumas pessoas acham que isto era apenas uma distinção feita apenas para as universidades: escolheram-se algumas artes “nobres”, que eram ciências, e ensinaram-se essas (música, astronomia, lógica, gramática, etc.), enquanto outras mais “baixas” eram feitas pelas pessoas mais simples (tecelagem, agricultura, caça, etc.). Não é isso, porém, que pensava Tomás de Aquino. Bem pelo contrário, se nos fiarmos no maior filósofo do período medieval (e, por quanto me toca, o maior filósofo da história da humanidade), então a distinção entre artes liberais e servis baseia-se no seguinte: algumas artes fazem uma obra material, outras fazem uma obra imaterial. Àquelas que fazem uma obra material — porque a matéria deve servir o espírito — chamamos “arte servil”; àquelas que fazem uma obra imaterial — porque o espírito eleva a matéria — chamamos “arte liberal”.

Arte servil, então, não tem nada a ver com “reles” ou “indigna”. A arte servil é aquela que serve o espírito, aquela que o procura elevar. É por isso que a pintura é uma arte servil: o pintor faz uma obra material, que nos alimenta o espírito. Já a música é uma arte liberal — que alguém tenha que tocar a Nona Sinfonia é irrelevante, ela é um arranjo de harmonias mesmo sem a vibração no ar.

 

Mas bem, retornemos desta breve visita de estudo pela Filosofia da Arte Medieval. A Fonte de Duchamp pode ser uma obra de arte? A resposta de São Tomás de Aquino, estou em crer, seria a seguinte: sim, A Fonte é uma obra de arte, mas devemos ver bem que tipo de arte. Até aqui, recorde-se o leitor, fizemos duas distinções: artes úteis e belas-artes; artes liberais e artes servis. Isso, claro, significa que há quatro tipos de obras de arte:

  1. Bela-arte e arte liberal, como a música e a literatura;
  2. Bela-arte e arte servil, como a pintura e a escultura;
  3. Arte útil e arte liberal, como a gramática e a lógica;
  4. Arte útil e arte servil, como o artesanato e a culinária.

A Fonte é uma obra de arte, sim, mas de qual grupo? Penso que São Tomás de Aquino diria: do terceiro. Aquele urinol assinado é foi feito e exposto através da virtude de um artista, e por isso é uma obra de arte. Porém, não é — nem foi feito para ser — belo. Poderíamos perder aqui muitas mais palavras a discutir o que é a beleza e se é objetiva ou não, mas saltemos o assunto. Um urinol usado e assinado à pressa não é belo. Ainda que fosse, teria sido sem a vontade do autor. A Fonte, portanto, não pode ser uma bela-arte. Mas será uma arte servil ou uma arte liberal? Se aquilo que Duchamp tiver feito for um objeto material, então será arte servil; se for imaterial, então será arte liberal. Um urinol, claro, é material. Porém, note o leitor, Duchamp não fez ou produziu um urinol — o urinol já estava feito! Não, bem pelo contrário, com o seu gesto, Duchamp não está a fazer um urinol, mas está, isso sim, a fazer uma crítica à arte contemporânea. Mas “uma crítica” é imaterial! A Fonte, então, pertence ao terceiro grupo: é uma arte útil — a sua utilidade é passar uma mensagem! — e essa mensagem, essa crítica, não está na matéria, mas é imaterial.

Talvez a imaterialidade de A Fonte possa parecer ao leitor um pouco forçada. Nesse caso, considere o exemplo da literatura. O Senhor dos Anéis é uma obra literária. Mas o que é essa obra literária? Será o exemplar concreto, o manuscrito, feito pelas mãos do próprio Tolkien? Serão as formas geométricas desenhadas pela tinta da sua caneta? Não. O Senhor dos Anéis, como qualquer obra de literatura, é imaterial. Que tenha sido escrita em tinta azul ou preta, ou contada a alta voz, é absolutamente indiferente. O suporte material é como que um “acidente” da obra, isto é, algo que lhe acontece, mas não algo que ela é. Do mesmo modo, em A Fonte, o urinol material é um mero acidente, algo que está ali apenas para passar a mensagem, mas que não é a obra propriamente dita.

 

A obra de arte, essa, é imaterial: e, por isso, A Fonte é uma arte liberal, libertando o urinol da sua materialidade, elevando-o à dignidade de ser uma crítica, uma mensagem para o mundo da arte.

 

Artigo da autoria de Gonçalo Costa