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Crónica

Histeria

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Imagem: Allyssa Olaivar (Unsplash)

A manipulação de conceitos originalmente inocentes e meramente descritivos é um facto adquirido, mas até que ponto é que a evolução semântica de certos termos afetará a nossa perceção sobre a sociedade?

O significado do termo, que uma vez se limitou a denominar o órgão reprodutor feminino útero (do grego, hystera), tem sido manipulado ao longo dos séculos pelo sexo oposto. Desde a associação do termo a possessões demoníacas das mulheres, com a formação da igreja cristã, à simples evocação da expressão de forma insultuosa, considero ser seguro afirmar que a palavra em questão tem sido convenientemente manipulada em volta do desconforto masculino em relação a qualquer comportamento ou sentimento não-passivo, geralmente feminino.

A associação do termo de forma pejorativa a qualquer comportamento feminino fora das normas aceitáveis da etiqueta dos séculos passados continua em debate nos presentes dias — o horror da sociedade perante uma manifestação ativa de um sentimento de simples entusiasmo torna-se especialmente curioso quando comparado com o louvor dado a comportamentos correspondentes num contexto viril.

É sem dúvida interessante, no mínimo, o choque derivado do entusiasmo feminino perante situações como um simples concerto! Imagine-se agora a necessidade de expressar tal sentimento através de gritos histéricos e estridentes mal um artista entra no palco do seu concerto! O fascínio desmedido na presença de outro ser humano! Por que razão haveria alguém de se entusiasmar a esse ponto?! É realmente um conceito difícil de ser compreendido pelo homem contido, controlado — nunca nenhum se comportou de tal maneira diante de uma transmissão numa televisão, como um jogo de futebol, talvez; nunca nenhum sentiu a necessidade de falar — num volume que num contexto feminino seria reportado como excessivo (histérico até!) — para um mero ecrã, como se a trajetória do que está a acontecer quer em tempo real, quer passado, fosse subitamente mudar graças à sua tão útil manifestação.

Emoção e paixão são, aparentemente, exclusivamente femininas, e ninguém se atrevia a levantar a voz por razões tão mesquinhas e mundanas. Histerismo não passa, então, de mais uma tentativa de reprimir qualquer expressão de entusiasmo que não esteja diretamente associada com um conceito primitivo de masculinidade. Na verdade, esta conceção não só afeta o género feminino, como também qualquer indivíduo que não cumpra cada um dos paradigmas de virilidade.

Segundo Maria Cohut, no jornal Medical News Today, “os usos da palavra têm sido tão imprecisos historicamente, e o termo tem ganho conotações tão negativas — usado para descrever qualquer explosão violenta de emoção — que foi “reformado” pela Associação Americana de Psiquiatria em 1952.” (The controversy of ‘female hysteria’, Maria Cohut, 13 de outubro de 2020, Medical News Today).

Realmente, o termo médico caiu em desuso com o avanço da área da psicologia, tal como o de histeria coletiva – fenómeno que também seria mais proeminente no mundo feminino. Ao contrário do que certos estudiosos pretendem fazer parecer, a autora do artigo anteriormente referido confirma o que muitos suspeitavam: a heterogeneidade nata de episódios histéricos invalida qualquer limitação de género.

Artigo da autoria de Joana Oliveira