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Crónica

O Melhor dos Meninos

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Imagem: Criança Viada de Bia Leite

Magrinho e com um tom de voz tido como afeminado, eu brincava muito com meninos até então. Antes de me descobrir como trans não-binária. Brinquei de pipa, de bila, de pescar e nadar no rio. Jogava bola. Sim! Eu jogava muita bola. Mas, mesmo assim, eu nunca perdi essa minha essência do meu eu feminino. Por que, se não me engano, estas eram algumas das brincadeiras de menino. Brincadeiras que homens tinham que obrigatoriamente brincar no interior onde eu cresci. Brincadeiras que colocassem força e agilidade em funcionamento. Bem pudera, a gente não tinha dinheiro para comprar brinquedo. Então a gente brincava como era possível. No mundo. Na natureza.

Eu era uma criança muito viada. Daquelas que gostavam de dar show quando fazia um gol. A verdade era que eu sempre tentava me encaixar piamente na tarefa que me fora dada desde o meu nascimento: ser homem. E isso meu pai fazia questão de lembrar todos os dias. Me lembro que, quando a gente ia pro rio dar tainha — que é um salto onde o nadador entra de cabeça na água —, eu sempre me preparava para ser a melhor. Meu salto era quase uma performance — se não fosse. Eu queria fazer as coisas de menino da melhor forma possível.

Eu tinha de ser a melhor criança menino. Eu queria que a calda da minha pipa fosse imensa. A maior entre todos os garotos. Ela tinha de ser uniforme e esteticamente harmoniosa. Tratava-se de uma sacola plástica que, embora fosse toda repicada para dar forma ao rabo da “arraia”, tinha a sua cor escolhida a dedo. Tinha de ser a pipa com o rabo mais grande e deslumbrante. E era. Como tudo na minha vida hoje.

Bila [bolinhas de gude] eu tinha de monte. Quaisquer cinquenta centavos eram facilmente investidos nesse negócio: comprar bila. Triângulo, buraco; jogava todos! Umas três garrafas pet dessas de dois litros transbordando bolinhas de vidro cintilante ao total. Eram muitas! Mais de quatro tons de azuis: celeste, royal… Bilas verdes, amarelas. Com transparência e detalhe ao centro. As nomeadas cocão, pense numas bilas grandes! Tinha cinco no total. Elas não cabiam dentro das garrafas. Sem falar que era morte certa jogar com eles. Eram fáceis de acertar, mas boas de quebrar as bilas dos adversários. Por vezes quebravam as minhas. E eu chorava a perda por uns dez minutos

Eu tinha uma mania de lavar todas as minhas bilas ao final do dia. Elas tinham que reluzir. Eu as deixava de molho dentro d’água e as inspecionava, uma a uma, buscando imperfeições para descartá-las. Não gostava de bilas rachadas, arranhadas ou faltando pedaço.

Me lembro de brincar de caçar passarinho no mato com os meninos. Pegávamos argila na beira do rio e fazíamos bolinhas para que, quando secas, depois de expostas ao sol, pudessem se tornar as nossas munições para caçarmos com nossas baladeiras. Existia um acordo de caçador entre os garotos: aquele que matasse um beija-flor tinha que arrancar o seu coração e comê-lo, se possível ainda pulsando. Era nojento, confesso. Mas era coisa de menino. E os meninos tinham essas promessas que punham a honra sempre à prova. Uma autoafirmação masculina, sei lá.

Eu, sempre na tentativa de exercer o meu papel de menino com maestria, trabalhava duro na feição das bolinhas. Tinham de ficar impecáveis. Minha máxima realização foi quando comprei a minha baladeira do cabo de aço. Foi quando matei o meu segundo beija-flor. Mas não comi seu coração.

Com o tempo, parei de caçar. Além de entediado, fiquei com muita pena dos passarinhos. Descobri novas brincadeiras, fiz novos amigos. Criei a minha própria maneira de ser. Como fui criado na pedagogia do “pêia ajeita”, a surra era o único diálogo possível. E, por vezes, fui reprovado. Mas no percurso entendi que as minhas brincadeiras tinham de ser sobre mim, e não sobre como ser o melhor dos meninos.

Artigo da autoria de Ícaro Machado

*Crónica disponível na obra Criança Viada com titulo original: brinquedo. 

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