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Crónica

Peia Ajeita

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Ilustração: Circe Feiticeiro

Acontece que a gente aprende com o que se ensina. Com o desbloquear do tempo, a gente vai vendo que o tempo todo a gente estava aprendendo a ser homem: bate, enrijece e não chora! “Peia Ajeita” é sobre a vida que te surra enquanto te ensina a crescer feito homem. Um homem feito que bem no fundo ainda preserva um menino pueril. Essa é a crónica de hoje.

A palavra “peia” é um substantivo feminino que pode ter diferentes significados dependendo do contexto. Contudo, alguns dos significados mais comuns são: surra, pancada, castigo físico, punição. “Peia Ajeita” — analogia a Piaget —, era a pedagogia que reinava na educação de muitas crianças dos anos 90. Não tinha diálogo para traquinagem, mau comportamento e muito menos para baitolagem. Pelo menos é o que eu entendi depois que virei gente grande:

Quantas surras sem motivos foram dadas até que toda criança viada percebesse que a real motivação da ‘peia’ era o seu jeito afeminado — existem teóricos que acreditam que isso tem um tanto de misoginia, toda essa aversão ao feminino, ao Ser Mulher.

Me ocorre na memória uma vez que a surra aconteceu na cozinha. A minha mãe estava a preparar o almoço e a minha irmã sentada à mesa. Eu havia acabado de tomar o meu banho. Nessa época eu adorava tomar banhos demorados. Muito porque eu estava me “descobrindo sexualmente”, entendendo minhas zonas erógenas. Mas também porque eu adorava ficar deitado no chão do banheiro, deixando a água correr sobre o meu corpo enquanto eu performava a minha própria versão do videoclipe My Immortal da banda Evanescence. Eu era a própria Amy Lee desmaiando no banho e acordando em outro mundo. Eu amava isso.

Então, eu tinha acabado de sair do banho e estava com a toalha a me enxugar. Aqui em casa a gente sempre lidou muito bem com a nudez, então, a gente se trocava de boas um na frente do outro. E nesse dia eu tava só de toalha na cozinha. Coisa de cinco minutos depois, levei umas “lapadas” de mainha. O motivo? Eu comecei a dançar com a toalha presa à cintura como se fosse uma saia de quadrilha (vestimenta em festas juninas). Eu rodopiava até ser surpreendido com duas chineladas nas pernas em reprovação. Fui colocar uma roupa em seguida.

Coisa de três anos depois, teve outra situação onde eu apanhei do meu irmão simplesmente porque queria ver o filme Crossroads – Amigas Para Sempre (2002) que iria passar na Sessão da Tarde (Globo). O motivo não ficou tão claro, mas hoje entendi que esse era o filme da diva pop Britney Spears — e eu nem gostava tanto dela nessa época. Lembro que o meu irmão ficou fazendo birra, mudando de canal de propósito, tudo para me impedir de assistir ao filme. Então, depois de eu insistir muito, ele me deu uns dois murros nas costas e eu chorei. Chorei muito. Lembro que a raiva dele ficou ainda maior porque eu não revidei. Ele queria muito que eu revidasse. Que eu aprendesse a bater também como ele. Porque homem bate e mulher chora.

Uma vez estava saindo para a missa com o pai. Não recordo agora o quê exatamente, mas parei para perguntar uma coisa e coloquei a minha mão nos “quartos” (cintura) enquanto o indagava. Ele fez uma cena, gritou comigo e me bateu. Na hora, não entendi nada. Fiquei com muita raiva dele e ele de mim. Passamos até um tempo sem nos falarmos, mas depois tudo voltou ao “normal”. Depois disso, nunca mais coloquei a minha “mão nos quartos” na frente dele, feria a sua moral e os tals “bons costumes”.

Sabe, hoje eu sei os porquês de algumas surras: toda performance e trejeitos tidos como “de menina” deviam ser abolidos. A etiqueta social não permitia isso. Portanto, quem se atrevesse a descumprir o combinado deveria ser educado com a pedagogia do “peia ajeita”.

 

*Indico fortemente assistir ao curta-metragem BICHA BOMBA (BOMB-QUEER) – FILME PREMIADO (AWARD-WINNING FILM)

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado

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