Crónica
Aniversário
Hoje é 17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. Por isso, decidi trazer uma crónica — de tantas histórias — que (re)contam e refletem vivências e violências que crianças LGBTQIAP+ sofrem nas suas infâncias. Mas também para lembrá-los de que homofobia não é apenas uma ação física. Infelizmente, essa violência segue institucionalizada, fincada na nossa sociedade machista-patriarcal estruturada enquanto “pedagogia sociocomportamental”.
Bolos, bicicletas e outras alegrias. Toda criança gosta de aniversário, de comemorar junto aos coleguinhas, participar de festinhas temáticas na escola, comer bolo de chocolate, beijinhos e brigadeiros. Ah, aquelas lembrancinhas recheadas de balas, pipoca e gomas que pregam no dente. Aniversário é dia de beber muito refrigerante e comer pipoca até a barriga explodir. Estourar a bola gigante do caba-cega e se desesperar com todos aqueles bombons, pirulitos e chocolates no chão cobertos por um mar de crianças eufóricas não têm preço!
Eu mesmo nunca tive uma festa só para mim. Não fui criado com essa cultura de presentear. A gente não podia se dar a esse luxo…
Depois é que eu fui me firmando enquanto criança viada de fato, sabe. Quando passei a ser apontado e taxado na rua como um menino afeminado — isso porque os mais velhos sempre descobrem primeiro que você e fazem questão de te julgar por isso. E nem sei porquê, mas eles meio que te obrigam a pensar: “eu sou isso mesmo?”.
Depois que eu me reconheci. Foi quando eu comecei a entender o que estava acontecendo: eles iam me despir de tudo até que não sobrasse nada de mim.
Remanescesse. Quando fui crescendo, eu percebi que tinha aniversário na rua do qual eu não era convidado. Os convites foram, gradativamente, diminuindo. Tornaram-se, com o tempo, escassos. Muito também porque eu era pobre, e geralmente não tinha presentes para levar. Ser presente não era presente. O que importava era o presente material. Mas também porque eu era gay. Uma criança queer viada. E isso talvez fosse inadmissível nas festas infantis da minha rua. Pelo menos eu acho isso hoje.
Lembro-me de vários aniversários de colegas a que não pude ir por falta de convite. Eu ficava na minha janela, só na vontade. Observava as crianças passarem, todas arrumadas com os seus embrulhos de presentes à mão. Alegres, indo para as festas de aniversário.
Sentado na janela vestido com o meu shortinho tactel surrado e sem blusa, eu torcia para que alguém parasse e me chamasse para que o acompanhasse até a festa. Se alguém me convidasse, eu bem que ia. Eu queria mesmo participar.
Sem entender, eu dizia para a minha vó que eu ia mesmo sem convite. Então eu tomava banho e começava a me arrumar. Mas ela não deixava. Dizia que eu não ia, que não tinha sido convidado. Eu retrucava dizendo — “Mas vó, tá todo mundo indo”.
“Mas ninguém chamou você”, ela dizia.
Só tinham dois aniversários aos quais eu não faltava. Os dois aniversários para os quais eu tinha certeza de que eu seria convidado. A festa da filha de uma amiga da minha vó, que sempre me convidava, dizendo-me que eu não precisava levar presente. E do meu primeiro amor, que ele fazia questão de me chamar pessoalmente. Ele entregava o convite e dizia: você tem que ir à minha festa.
Lembro-me de que uma vez eu não tinha roupa para ir a sua festa, então ele me levou até a sua casa e me fez escolher algo no seu guarda-roupa para vestir. Qualquer coisa que eu gostasse e que coubesse em mim. Então eu fui todinho dele para a festa dele.
Do afago, por vezes, eu pedia a minha vó para apagar a lamparina à noitinha antes de dormir. Eu me imaginava apagando as velinhas do meu bolo de glacê imaginário. Das festas que eu nunca tive, mas também daquelas que nunca era convidado.
No dia seguinte, os “restos das festas” chegavam à minha casa. A gente era a família mais pobre da rua. Sempre o que sobrava ia parar lá em casa. E eu comia tudo. A minha vó agradecia sempre com modéstia.
Essa e outras histórias você ler na obra Criança Viada.
Artigo de autoria de Ícaro Machado