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Opinião

Abraçar um milhão de pequenos farsistas

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Imagem: RTP (via Flickr)

“Compaixão pelo milhão de votantes do Chega” ou “nem todos são racistas ou xenófobos” são argumentos repetidamente recomendados desde o resultado eleitoral de 10 de março, que desenhou uma composição parlamentar com 50 deputados do partido de Ventura, e só Ventura.

De todos os sentimentos expectáveis no rescaldo da quadruplicação da bancada parlamentar do partido que melhor representa os ideais da ala mais à direita da direita em Portugal, foi a empatia que mais chocou. Não por parte de líderes partidários ou dos seus súbditos, numa eterna caça ao voto que alonga os limites do próprio bom senso, mas por um nicho da opinião pública e publicada a quem arde uma paradoxal vontade de abraçar um milhão de pequenos farsistas – um grupo constituído por pequenos racistas, xenófobos, machistas, ou “apenas” os protestantes que tanto têm sido acarinhados nas últimas semanas. Mas o que poderá estar na origem desse sentimento?

Proponho um exercício prático. Perspetive-se um jovem homicida que assassina o próprio pai depois de uma longa infância e adolescência de abusos físicos. A gravidade do assunto não poderia estar mais distante do caso de estudo, ainda assim coloca-nos uma útil questão: dever-se-á sentir empatia pelo assassino ou pelo assassinato? Parece bastante complicado ter algum tipo de compaixão pelo ato de retirar a vida a outrem, mas será difícil criticar quem se sinta minimamente comovido com a trágica história de vida do jovem criminoso.

É uma questão de princípios (o contexto de determinado acontecimento), de meios (o próprio ato), mas também de fins (os frutos que se pretende colher). Se o objetivo de uma parte do eleitorado do Chega é regressar a uma governabilidade autocrática baseada num sistema que premeia os “portugueses de bem” e que se sente superior perante outras etnias, géneros, em geral, sobre outros seres humanos independentemente das suas características biológicas, pouco se poderá contestar a sua orientação de voto, muito menos sentir qualquer tipo de compaixão se, como eu, não poderiam estar mais de desacordo com essas aberrantes “ideias”. Mas se a finalidade for apenas lutar por melhores salários, pelo direito a emprego ou habitação, enfim, por melhores condições de vida, motivados por consecutivos governos marcados por casos de justiça e por incapacidade de corresponder às suas expectativas, mas também pela perigosa máquina de propaganda de Ventura que se apoderou das redes sociais, a compaixão já é mais equacionável. Ainda assim, partindo do pressuposto que todos os partidos são democráticos e, como tal, partem redundantemente em pé de igualdade, não se poderá sentir mais ou menos empatia por um eleitor do Chega do que por um do Partido Comunista ou Iniciativa Liberal, que representam outra considerável parte do país descontente com os últimos anos de governação.

Então, assuma-se um certo nível de compaixão pelo famoso voto de “protesto”, excluindo os motivados por razões nada ou pouco éticas, e incluindo os protestantes dos restantes partidos não tão acarinhados por alguns comentadores de televisões, jornais ou praça pública. A mesma empatia que poderíamos defender pela história de vida do jovem homicida.

A questão é que, da mesma forma que o jovem poder-se-ia ter emancipado da figura abusiva paterna por uma via mais ética, ainda que provavelmente mais morosa, o mesmo se aplica à decisão de voto no Chega, tendo o partido sido pintado pelas mesmas televisões e jornais como um partido anti-sistema e até antidemocrático. Justifica-se a compaixão pela pobreza, miséria, precariedade, enfim, por todos esses infelizes vocábulos banalizados que afetam uma boa parte da nossa população e que imperam ser tomados em conta pré e pós-eleitoralmente. Mas não há empatia justificada pelo voto, assim como não pelo homicídio em si e finde-se aqui o exemplo prático.

Não há empatia justificada pelo voto. Num processo democrático eleitoral a todos é concedido o mesmo direito e todos, quimericamente falando, determinam os seus representantes no governo. Um direito, diga-se um dever, mas também uma responsabilidade que suscita consequências. Responsabilize-se anteriores governantes. Responsabilize-se a relação da retórica venturiana com a algoritmia das redes sociais. Mas a cruz tem autor e é de pouco valor fingir agora amar quem, no fundo, se repudia. Se o Chega é ameaça à democracia e uma possibilidade de um regresso ditatorial, sejamos honestos com quem tem tido a responsabilidade de permitir Ventura farejar o poder.

Duas conclusões. A primeira é de que nenhum eleitor do Chega, de um ponto de vista meramente abstrato e indistinguível, é merecedor de maior ou menor compaixão de que outro qualquer eleitor de outro qualquer partido. É a democracia a funcionar. A segunda, relativamente à cor partidária de 50 dos 230 deputados e irremediavelmente mais relevante, é a ideia que Margaret Atwood elabora no seu The Handmaid’s Tale:

“Vivemos como habitual. Todos o fazem, a maior parte do tempo. O que quer que esteja a acontecer é o habitual. (…) Vivemos, como habitualmente, ao ignorar. Ignorar não é o mesmo que ignorância, requer trabalho.”

Seguem-se tempos de aprendizagem. É imperativo que não os ignoremos.

Artigo da autoria de Nuno Canossa