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Crónica

VONTADE DIVINA, TALVEZ

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Sandra Figueiredo

Sandra Figueiredo

Há muito tempo que deambulo sobre os sentidos da vida. De que forma escolhemos caminhar por trilhos duvidosos. Os tropeços que damos para evitar um abismo. Até que ponto estamos a seguir as pegadas do rasto inicial?

Percorremos todos uma reta com uma só saída, ou afinal vivemos num labirinto intrincado de possibilidades?

Brittany Maynard colocou um ponto final na sua vida voluntariamente, depois de ser diagnosticada com cancro cerebral terminal. Em jeitos de desvio, parece que a sua escolha é incompatível com o seu destino imutável.

Quando se aborda temas tão delicados, a polémica desabrocha rapidamente. Discussões intermináveis afloram condenando ou aplaudindo a decisão da jovem que desafiou o status quo contemporâneo.

Particularmente, o Vaticano apresentou um categórico ponto de vista. O presidente da Pontifícia Academia para a Vida explica: «Não julgamos as pessoas, mas o gesto é para se condenar». Uma afirmação interessante e um tanto contraditória. De que forma se pode condenar a ação de alguém sem julgar a pessoa em causa? Talvez esta frase tenha resultado de um exercício mental menos prolongado do que deveria.

Quando Deus “soprou nas narinas o fôlego da vida, foi quando o ser humano passou a ser a alma vivente” (Gn 2:7). A simples existência é sagrada à luz da Bíblia, mas as pessoas continuam a morrer em frente do todo-poderoso omnipotente, até porque só Deus é que pode decidir quem fica e quem vai. Será que, então, não podíamos ponderar que tenha sido Deus que guiou a sua escolha?

A escolha pecaminosa da jovem diagnosticada com glioblastoma foi considerada pelo Vaticano “um absurdo”. Sempre considerei humorístico a forma como nós, patéticos mortais terrestres, temos a capacidade de formular e reproduzir mentalmente a vivência alheia. Conseguimos ainda ditar dogmas inalienáveis completamente abstraídos do contexto individual e pessoal, de forma a conseguir criticar e julgar uma ação até ao escrutínio. Neste particular caso, é de notar que Brittany está condenada por ter cometido suicídio. Perdeu a sua alma por ter interferido nos desígnios que Deus lhe tinha destinado e agora não é merecedora de perdão divino.

Eis que se desmistifica viver com cancro: ter uma existência marcada por falta de qualidade, onde a doença afronta e amedronta todos os nossos dias. Sofrer silenciosamente enquanto polvilhamos esperança irrealizável aos que nos rodeiam. E, por fim, ter uma vida com fim marcado e espelhado em todas as íntimas vicissitudes.

Proponho o desenlaçar de crenças pré-históricas que não se adequam a nenhuma situação do século XXI. A interpretação unilateral da Bíblia permite disparar tolices através de um festival de metáforas com centenas de anos. Mas prever a condenação da alma de Brittany pela sua decisão de morrer com dignidade – junto dos que ama sem dor ou sofrimento – é uma chamada de atenção para revermos as nossas ideologias pré-concebidas.

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