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Crónica

Cativar o Mundo: Migração, Natal e a Promessa do Ano Novo

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Natal: Ilustração do Pequeno Príncipe flutuando no espaço, segurando fios ligados a pássaros em voo, entre planetas e estrelas, simbolizando viagem, deslocamento e busca por pertencimento.
O outro passou a ser visto como ameaça, e não como possibilidade. Esquecemo-nos, talvez, de que toda cultura nasce do encontro — e de que nenhum lugar é puro o suficiente para dispensar a alteridade | Imagem: SORA IA

O Principezinho parte porque precisa desaprender o que pensa saber. Não abandona o seu planeta: suspende-o. A viagem, em Saint-Exupéry, não é fuga nem aventura vazia; é um gesto íntimo de deslocamento. É uma tentativa de cruzar suas próprias convicções num grande passeio pelo desconhecido. 

Ao deixar o seu minúsculo planeta, onde uma rosa exige paciência diária, e os seus vulcões pedem cuidado constante, o principezinho aprende que só é possível compreender o próprio mundo quando se aceita ver outros. Mas cada novo planeta visitado não amplia apenas o universo — eles ampliam a escuta. Partir é, antes de tudo, um método delicado de se procurar.

Toda partida, porém, carrega consigo um retorno implícito, ainda que invisível. Mesmo quando não se regressa ao mesmo lugar, volta-se outro. Cativar é amar, ensina a raposa, mas amar implica tempo, risco e exposição. Implica deslocar-se do centro de si, aceitar a instabilidade do encontro, reconhecer que o outro nunca será conforto imediato — será travessia. Talvez por isso o humano seja, desde sempre, um ser migrante. Não apenas por necessidade, mas por vocação ontológica ao movimento.

Natal: Antes de qualquer fronteira, fomos movimento

No Paleolítico, povos coletores-caçadores deslocavam-se conforme o ritmo da natureza: seguiam as plantas, a água, os animais. Eram nômades não por instabilidade, mas por inteligência adaptativa. Dessa mobilidade nasceram o bipedismo, a linguagem, o uso do fogo, as ferramentas de pedra e os primeiros pactos comunitários. A sedentarização só viria depois, com a agricultura, impondo cercas, territórios e pertenças fixas.

O mundo avançou porque caminhou — e continua avançando porque insiste em atravessar…

Hoje, a migração intensificou-se por outras vias. Cruzamos oceanos digitais em segundos, habitamos línguas híbridas, existimos entre fusos horários e afetos fragmentados. A tecnologia encurtou distâncias, mas ampliou medos. Com a globalização, vieram também o preconceito, a suspeita do estrangeiro, o receio do diferente. O outro passou a ser visto como ameaça, e não como possibilidade. Esquecemo-nos, talvez, de que toda cultura nasce do encontro — e de que nenhum lugar é puro o suficiente para dispensar a alteridade.

É no Porto — cidade de pedra, memória e trabalho — que muitos sonhadores chegam. Chegam com diplomas que não valem, sotaques que denunciam, currículos que pedem equivalência, contratos que não se firmam. Trabalham depressa, produzem muito, pertencem pouco. O relógio corre, o dia acaba, o corpo cansa — e a solidão permanece. A cidade funciona, mas nem sempre escuta.

É nesse mundo que João monta a sua árvore

A árvore de João era acipoada. Um galho seco, amarronzado, desses que carregam a memória da falta de cuidado. Em uma lata velha de tinta decorada, ele soterrou a ponta da galha de cajueiro em areia trazida de um quintal que já não reconhecia como seu. Firme, o símbolo de Natal sustentava-se no centro da sala. Era a coisa mais viva no interior de uma casa silenciosa demais. Muitos cômodos, uma só língua falada em voz baixa.

A verdade é que João decidira que, neste ano, na sua casa teria uma árvore de Natal iluminada. E assim o fez. Pensou cada detalhe: cada bola de esferovite arredondada ganhou nova cor com o guache à base de água. Tinha canudos, caixinhas de fósforos, arcos de palha. Tudo foi redecorado com brocal barato, fitilhos e outros objetos artesanalmente pensados para ilustrar a sua árvore planejada.

Dos piscas, escolhera os amarelos cintilantes e um azul cobalto — eram as suas cores preferidas.

O isolamento de João não vinha da ausência de pessoas, mas da falta de integração. Da cidade que passa depressa demais para quem chega devagar. Da pressa do trabalho que consome o dia e não devolve o afeto. Do sotaque que denuncia, do corpo que não pertence, da pergunta nunca feita: “como estás?”. João não estava só por estar distante — estava só por não ser visto.

Ser estrangeiro é aprender a existir em suspensão. Entre o que se deixou e o que ainda não se tornou casa. E como me dissera um amigo uma vez: “é saber viver no desconforto”. João atravessou oceanos, horários, documentos, mas encontrou dificuldade no gesto mais simples: o acolhimento. Naquela noite, ele, o galho seco fincado na areia e a fome de pertença partilhavam o mesmo espaço. A árvore não esperava visitas. Esperava sentido.

Para Ganhar Um Ano Novo Que Mereça Esse Nome

O Natal, talvez, nos devolva a quem somos. É tempo intra, sentimental, de recolhimento e memória. Aproxima-nos do que pulsa por dentro, das ausências que doem, das presenças que ainda nos constituem. O Ano Novo, ao contrário, projeta-nos para fora: é promessa, desejo, arquitetura do que queremos ser. Um é espelho; o outro, horizonte. Entre ambos, construímos a possibilidade do recomeço.

Por isso, falar de Ano Novo é falar de fé. Não de fé dogmática, mas daquela que se deposita no outro. A maior força de qualquer religião talvez esteja nesse gesto inaugural: acreditar que o encontro ainda é possível. Que o cuidado ainda cria mundo. Que cativar — mesmo num tempo apressado — ainda vale a pena.

Carlos Drummond de Andrade, na sua Receita de Ano Novo, não propõe milagres imediatos. Propõe trabalho paciente: varrer o que pesa, plantar gestos, esperar flores. O novo, ali, não cai do céu — constrói-se. Talvez seja isso que João nos ensine com sua árvore improvável: recomeçar é um ato cotidiano, silencioso e profundamente humano. Que o próximo ano nos encontre dispostos a limpar os olhos, abrir a porta e acreditar, mais uma vez, no outro.

Se você não consegue compartilhar a calçada, de certeza você na está preparado para ocupar um espaço no mundo.

 

Texto da Autoria de Ícaro Machado (reimaginado com IA)

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