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Cultura

Em terras de Putin, nem todos são putinistas: a arte e a internet como armas de revolta

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Fotografia por Bárbara Pedrosa

A oposição à guerra não vem só de fora. Não são todos, e há quem defenda não seja a maioria, mas a oposição dos russos às ações da Rússia existe e é vocal. A repressão tenta travar as vozes opositoras por todos os meios, mas onde há arte, há intervenção e onde há internet, há liberdade. No maior país do mundo, poetas, atores ou podcasters querem ser a voz corajosa de um povo e a internet tem sido o palco do protesto. Entre posts de Facebook e vídeos no Youtube, há quem não se cale contra os tempos conturbados que o país vive.

Desde o dia 24 de fevereiro que a vida é outra no leste da Europa. A Rússia encetou uma invasão de grande escala sobre o território ucraniano e ressuscitou os já distantes tempos de guerra na Europa. Aquilo que Vladimir Putin anunciara como “uma operação militar especial” no leste da Ucrânia prolonga-se até hoje e o terror da mobilização e a incompreensão das motivações belicistas do país acordaram a resistência interna da nação. Em terras de Putin, nem todos são “putinistas”.

Em setembro, as agências internacionais noticiam a detenção de mais de 1000 manifestantes russos antiguerra. Imediatamente a seguir à mobilização forçada anunciada pelo presidente. Seria a primeira mobilização militar desde a segunda guerra mundial. Um dos responsáveis pelo movimento organizador gritava: “Milhares de russos, os nossos pais, irmãos e maridos, vão ser atirados para o moedor de carne da guerra. Por qual causa morrerão? Por que motivo chorarão as mães e os filhos?” E este tem sido o mote dos opositores. Não há identificação com as causas da guerra. Uma guerra “ridícula”, como diz o escritor russo Alexey Oleynikov.

A poesia corajosa e criminosa

Oleynikov tem 43 anos e é um premiado escritor de contos infantis. Usa, nestes tempos de guerra, o Facebook como principal plataforma de descontentamento. Não esperou muito, quase nada, aliás, para reprovar esta guerra. No princípio de março, publicava esta estrofe que recebeu muitas partilhas: “Não lavaremos a vergonha até à nossa velhice, até morrermos / Já houve tempos piores, mas nunca houve um tempo mais ridículo.” Mas não parou por aí. É uma voz ativa e consistentemente contra as políticas do Kremlin.

Faz publicações quase diárias sobre o assunto e, através da fina ironia como escape do drama dos tempos, finca-pé contra a políticas de censura e opressão do país. Em agosto escrevia: “É assim que tu te sentas, alimentas a guerra com a colher, e então ela lambe os lábios e come o teu bebé.” A publicação gerou as mais reações de desalento entre os seguidores russos. Choravam a morte de milhares de ucranianos e criticavam Alexándr Dúgin, um filósofo político russo tido como principal inspiração para as ideias radicais do presidente Putin.

A poesia antiguerra marca presença também no Youtube. Por lá, o canal de televisão independente russo Dozhd publica semanalmente poesia antiguerra escrita em russo. Um dos vídeos, publicado em setembro, declama a poesia da atriz e poetisa russa Zhenya Berkovich. O poema conta a história de um jovem russo assombrado pela presença do fantasma do seu avô, que lutara na segunda guerra mundial. O avô pede que a sua memória e o seu valor não sirvam de desculpa para a guerra atual. “Podes, meu querido neto, /não escrever nada sobre mim no Facebook? / Em nenhum contexto / aceita e não o faças, pede o avô, /não quero vitórias em meu nome/não quero vitórias de todo”.

O vídeo conta, ao dia de hoje, com 77 mil visualizações, quase 8 mil “gostos” e nem 90 “não gostos”. Um sinal de aprovação da mensagem. Os comentários, mais uma vez, são o espaço de desabafo e terror. Quase todos, como se em uníssono, defendem que ir até à Ucrânia significa trair os avós e sua memória e legado, os mártires e sobreviventes da segunda guerra mundial.

A poesia pode parecer resistência parca, mas é considerado um gesto de revelia criminosa. Aliás, em setembro foi noticiada a prisão de três poetas russos após lerem poemas antiguerra. Artiom Kamardine, Egor Chtovba e Nikolaï Daïneko foram detidos por “suspeitas de incitamento ao ódio com ameaça de uso de violência”. O primeiro, Kamardine, surgiu, mais tarde, de joelhos, a pedir desculpa. Um pedido de desculpa feito “sob tortura”. Os três incorriam no risco de serem condenados a penas até seis anos de prisão.

A sobrevivente imprensa independente

A resistência tem lugar também nos podcasts, o filho mais novo da comunicação na internet. “Russian Resistance” é um podcast produzido pela “Paper Media” um órgão independente sediado em São Petersburgo. Arrancou em julho e analisava, com uma frequência entre a semanal e a mensal, o desenrolar da invasão russa. Os títulos são sugestivos o suficiente para perceber a posição dos ativistas, jornalistas, artistas que dão voz ao programa. “São pessoas que não conseguem manter-se caladas e que discutem como nós, russos, perdemos a nossa liberdade, continuamos a lutar e porque é que ainda há esperança.”, resume a biografia do podcast.

Contam no primeiro episódio a história de um russo preso durante dez anos por mensagens antiguerra, num outro episódio abordam as mulheres como cara do movimento antiguerra, abordam a arte política como arma contra o regime de Putin ou falam da possibilidade de combater as autoridades estando infiltrado nas próprias autoridades.

Por motivos desconhecidos, não publica desde o dia 10 de outubro. Apesar disso, a “Paper Media” mantém atividade e mantém-se como uma voz independente num país onde muitos dos media são controlados pelo Estado.

Na Rússia, a liberdade de imprensa é um assunto complexo e controverso. De acordo com o Índice de Liberdade de Imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras, os russos ocupam o 155º lugar num ranking de 180 países. Apesar das restrições, há, ainda, alguns meios que se conseguem manter operacionais. Além da já referida “Paper Media”, também a Radio “Echo of Moscow” ou o jornal “Novaya Gazeta” prosseguem na cobertura dos acontecimentos no país de forma isenta e independente. No entanto, os desafios e pressões constantes não cessam e incluem, até, ameaças e ataques físicos a jornalistas.

Hoje, como sempre, a arte e a cultura são voz de protesto contra a opressão dos mais fracos, a materialização da coragem de um povo, mas hoje, como nunca antes, a arte e a cultura têm na internet um veículo de um poder incalculável. O governo russo sabe disso, mas os russos também o sabem. E apesar de haver quem colabore com a mensagem oficial e institucional, há quem queira ser voz de protesto e coragem. Em tempos de opressão e censura, um poema ou um podcast podem ter o impacto de uma multidão revoltosa.

Artigo da autoria de Tiago Sousa