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Artigo de Opinião

Ainda queremos saber falar Português?

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O que é a cultura e o que faz parte dela? 

Poderá dizer-se que o conceito de cultura se refere ao sistema organizado de símbolos, ideias, explicações, crenças e bens materiais que criamos e produzimos no decorrer do nosso quotidiano. Inclui ainda os costumes através dos quais organizamos o nosso mundo e mantemos uma estrutura social. A cultura não é estática, homogénea ou delimitada, mas sim dinâmica e fluida. Está sujeita a mudanças ao longo do tempo e é, por isto mesmo, posta à prova repetidamente. 

A cultura permite identidade. Aspetos como o que comemos, como nos vestimos, tradições étnicas e religiosas, os valores que nos guiam, fazem todos parte da nossa cultura e são formas que utilizamos para nos identificarmos a nós e aos outros. Um aspecto inerente à cultura de um povo e que tem um grande peso na sua identidade é a língua que partilha. 

Vivemos num mundo cada vez mais globalizado e por isso mesmo, cada vez mais pequeno. A globalização pode ser vista como a crescente tendência para conexões globais na cultura, economia e vida social. É a transmissão de ideias, significados e valores em todo o mundo de maneira a intensificar relações sociais. Assim, os povos comunicam mais entre si e ao consumirem os mesmos produtos e informação, consequentemente, alteram o vocabulário que usam. 

A língua já foi e continua a ser utilizada como mecanismo de poder. Observemos o exemplo da China. Quando os países ocidentais deixaram, aos poucos, de investir na construção de infraestruturas em países em desenvolvimento, a China viu uma oportunidade de fazer dinheiro. Com o seu projeto “One Belt One Road”, que visa criar uma cintura de estradas que interliga todos os continentes, à exceção da América, com a China, aproveita ao mesmo tempo para investir em aeroportos, barragens, autoestradas, etc, em diversos países africanos. São negócios complexos e que, na sua maioria, têm também como condição o ensino de mandarim nas escolas. Em países como Uganda, África do Sul e brevemente Quénia, esta medida já foi implementada, sendo no seu fundamento, um exercício de poder, uma vez que amplifica a influência da China no continente africano. 

No entanto, a língua tem também um enorme peso cultural. A língua que falamos é um reflexo do modo como vivemos e experienciamos o mundo envolvente. É um pau de dois bicos, não só reflectindo, mas também influenciando a maneira como vivemos. Antigamente, académicos portugueses usavam conceitos emprestados principalmente do francês ou inglês, por serem tão inovadores que ainda não existiam na língua portuguesa. Hoje em dia, já não só usamos conceitos emprestados, como todo um vocabulário comum e mundano, principalmente em inglês, consequência da globalização e cultura de consumo a que vivemos expostos. Palavras como “cool”, “awkward”, “slow-paced”, “background”, “whatever”, “cute”, “thanks” e “sorry” são palavras com as quais nos sentimos quase tão acostumados como outra palavra portuguesa qualquer. Apesar do vocabulário inglês usado variar conforme o contexto e a faixa etária, é inegável que o usamos. Um bom exercício será ativamente ouvir a quantidade de palavras em inglês que nós próprios e as pessoas com que nos relacionamos usam numa conversa banal. Quão rápido e inconscientemente é que estas nos escapam? 

Para dar um exemplo em como a língua que falamos reflete e influencia a forma como vivenciamos as nossas experiências pensemos na palavra “slow-paced”. Poderíamos escolher a palavra “vagaroso” para a sua tradução, ainda que esta seja apenas uma aproximação (é precisamente este aspecto, de todas as traduções serem aproximações, que nos permite diversidade cultural). Ao escolhermos usar a palavra “slow-paced”, denotamos uma vivência diferente daquela que evidenciaríamos se escolhessemos a palavra “vagar”. Algo “vagaroso” é algo “em que há vagar. Demorado, lento, pausado. Sereno; feito sem ruído. Que não tem pressa” (FIGUEIREDO, Cândido – Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa – Livraria Bertrand, LISBOA). Serão as palavras que escolhemos usar também a vida que escolhemos viver?

A instauração do inglês como língua franca permitiu que povos com diferentes línguas maternas comunicassem entre si. Atualmente, sentimos cada vez mais a necessidade de utilizar vocabulário e expressões da língua franca, que aos poucos, se vão dissolvendo com a nossa língua materna. Quando escolhemos usar palavras inglesas ao invés do seu “sinónimo” português estamos a contribuir para a perda gratuita da língua e da cultura que nos pertence. Como a cultura é algo que se cria e se altera através de interações sociais, o vocabulário utilizado por uma pessoa não a afeta individualmente. Ao escolher utilizar uma palavra em inglês estou ativamente a contribuir para que seja mais difícil, para mim e para quem me ouve, lembrar-se do seu “sinónimo” português, reduzindo assim o campo semântico da língua portuguesa. Estaremos assim a contribuir para a perda de diversidade cultural?

Sentimo-nos ameaçados com a perda de diversidade à medida que mais imigrantes entram no país, mas não pensamos duas vezes nas formas em como nós próprios podemos estar a contribuir para isso. Inúmeras línguas encontram-se em extinção, com uma língua a desaparecer por completo, em média, a cada quinze dias. Numa perspectiva mais radical, ao emergirmos nesta corrente inconsciente de adotar tantas palavras inglesas, poderemos estar a contribuir para uma alteração drástica da Língua Portuguesa como a conhecemos. 

Até que ponto nos é importante a língua que falamos? 

Se a língua influencia e reflete as nossas vivências, será que a língua portuguesa ainda nos serve para a vida que levamos? 

Será que no futuro nos farão falta as palavras da língua portuguesa que deixamos de usar?