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Crónica

Um conto de Natal

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Ultimamente tenho pensado muito no Natal. É inevitável não o fazer, com toda a conversa sobre ele que se tem nesta época do ano. Estou entusiasmada e expectante, porque não sei como vai correr.

Pela primeira vez, os meus pais decidiram que devíamos passar o Natal em nossa casa, só nós os três e o meu irmão. A Covid-19 foi o que levou à tomada desta decisão, mas a verdade é que já há muito tempo que a minha mãe namoriscava com essa possibilidade.

O maior problema do Natal é o quão stressante este acaba por ser: desde os doces até às prendas, do bacalhau até aos familiares mais desagradáveis, tudo é motivo de ansiedade e discussão. Por ser dos poucos dias do ano em que as famílias se reúnem, procuramos sempre manter o imaginário do Natal perfeito, numa sala com a lareira acesa e a mesa impecavelmente posta, onde as pessoas se sentam e passam as travessas e bebidas uns aos outros, no meio de conversas e risos, enquanto a televisão passa as notícias do dia num volume baixíssimo, porque no fundo, ninguém lhe está a prestar atenção.

Apesar deste clímax natalício ser o desfeche da “noite feliz”, é impossível ignorar todos os passos que levam àquele momento. Numa família onde o patriarca ou a matriarca já tenham falecido, é tudo mais complicado: o elo agregador que unia toda a família desapareceu, e restam só os pedaços de uma jarra, sem cola que os una. Aos poucos, vamos percebendo que não gostamos assim tanto da tia Júlia que, apesar das prendas generosas, comenta sempre o quão magros estamos ou pergunta se já arranjamos um namoradito. Começamos a questionar se temos de passar o Natal com a tia Júlia se o motivo pelo qual o fazemos – a avó – já cá não está.

O lugar de chefe de família e epicentro, sobre o qual o resto da família gira, fica desocupado, o que leva a hesitações da linhagem. Onde é que se passa o Natal? Quem cozinha? Quem é que paga as despesas da ceia? Estas perguntas geram problemas: a família precisa de um novo epicentro, sendo que muitas vezes ninguém o quer ser ou, noutros casos, todos o querem ser. Da mesma forma que discutiam por causa de brinquedos ou da última bolacha do pacote quando eram crianças, os filhos (e segunda geração da família), agora discutem numa batalha de egos e orgulho. São adultos, e as coisas já não se resolvem com um pedido de desculpas e um abracinho. Até porque, na nossa vida adulta, temos mais inibições e somos mais contidos. Não podemos dizer um “odeio-te”, mesmo que seja isso que sintamos, porque agora é um “odeio-te” a sério, que fere suscetibilidades e não pode ser resolvido com uma sessão de brincadeira.

Acaba por ser um Natal “mais ao menos”: numa família onde os mais novos têm para cima de 12 anos, deixa de existir a alegria e o entusiasmo infantis que definem o Natal. Há uma pequena tensão no ar, porque toda a gente ouviu a tia Júlia e o tio Augusto a discutir por causa da receita de rabanas da avó, na cozinha, mas ninguém quer falar sobre isso. Quando chega a meia-noite, abrem-se os presentes, sem surpresas: mais uma caixa de Ferrero Rocher, um par de meias e uma nota de 20€. Acaba-se de ver o filme que está a dar na televisão, ou o jogo de cartas que se estava a jogar, e vão todos para casa, enquanto cochicham no carro sobre o comportamento deste ou daquele.

O Natal é uma época em que todos ficamos mais sensíveis, porque tentamos perceber quem é que realmente importa nas nossas vidas, e a dificuldade em definir isso deixa-nos frustrados. Devo ligar-lhe a desejar feliz Natal? Ele nunca me ligou, por isso também não merece que lhe liguem. Devo participar na troca de prendas do meu grupo de amigos? Se calhar é melhor não, porque acabo sempre por dar prendas melhores do que as que recebo.

São este tipo de pensamentos que definem como as nossas relações funcionarão no futuro. O Natal, apesar de acontecer uma vez no ano, influencia o ano seguinte que, por sua vez, influencia as nossas vidas. Devemos aprender com esses pensamentos e tentar ser pessoas melhores, que pensam no mais importante não só no Natal, mas todos os dias.

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