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Artigo de Opinião

Ensaio sobre ficção, negacionismo e realidade pandémica

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Se Saramago estivesse hoje sentado na poltrona de sua casa a começar a escrever a sua tão aclamada obra “Ensaio sobre a cegueira”, certamente teria como grande fonte de inspiração a pandemia que vivemos. Sendo que foi escrita em 1995, podemos afirmar que Saramago era um visionário.

A história desta obra inicia-se quando um homem, em pleno trânsito, é atingido por uma cegueira, incomum, branca, e recorre ao seu oftalmologista, que se vê deparado com uma situação inesperada a que não consegue dar resposta. Desconhecimento, medo, incredulidade e impotência que prevaleceram após o oftalmologista ter sido contagiado com a cegueira branca. A situação agravou-se quando este surto se foi alastrando, disparando o número de infetados admitidos no hospital psiquiátrico, um edifício público que, pela grande disponibilidade de camas, foi reservado para o isolamento destes doentes.

Vimos este medo do amanhã, preocupação, impotência e desconhecimento do evoluir da situação espelhados na comunidade médica e científica quando surgiram os primeiros casos do novo coronavírus. Com o passar do tempo, foram crescendo hipóteses e teorias sobre a infeção, assim como recomendações que a população deveria adotar para evitar o contágio, almejando por fim à cadeia de transmissão do vírus.

E com este crescer de informação, surgiram também várias fake news e bastante informação contraditória. Enquanto em vários países se começava a instituir o uso de máscara, em Portugal, a DGS remava contra a corrente. Contudo, em março o uso de máscara tornou-se obrigatório em espaços fechados e, em outubro, estendeu-se esta medida a espaços abertos. Aquando da 1ª vaga foi depositada imensa esperança na hidroxicloroquina para o tratamento da SARS-CoV-2. Mais tarde, foi comprovada a sua ineficácia neste contexto. Mais um desapontamento, um obstáculo, um desafio para os profissionais de saúde, já exaustos desta batalha. Não obstante, é assim que se constrói ciência, com persistência e resiliência, não esperando encontrar verdades absolutas, mas permanecendo em constante questionamento.

Outro flagelo foi-se intensificando paralelamente à pandemia, o negacionismo, uma corrente que desvaloriza a ciência, objetando dados, factos e estudos. Um conjunto de pessoas que renuncia a vivência em sociedade e alega liberdade individual, sem ter consciência de que compromete a liberdade e segurança dos outros. Terão contribuído os discursos de líderes políticos como Bolsonaro e Trump para incentivar estes pensamentos?

Foi assim que surgiu o movimento Médicos pela Verdade, que esteve nas luzes da ribalta pela participação em manifestações contra o uso de máscaras e sobretudo pelas entrevistas à sua cofundadora, anestesiologista de profissão. Entrevistas estas que se revelaram uma metáfora da “cegueira” da obra de Saramago, assim como evidenciaram o perigo da liberdade de opinião.

São um grupo de médicos, dentistas, psicólogos clínicos e enfermeiros que defendem que as medidas implementadas são exageradas, são contra o uso generalizado de máscara, alertando para consequências nocivas daí derivadas, contra a testagem em massa, acreditando que os números de infetados divulgados pela DGS dizem maioritariamente respeito a falsos positivos. Alegam ainda uma desproporção entre o mediatismo do fenómeno e a gravidade do mesmo.

Chegam ao ponto de fornecer dicas para testar negativo à Covid-19, veiculando ideias que representam um perigo para a saúde pública. Recorrem a argumentos infundados e vociferam comparações incomparáveis com a pandemia, tais como “um diabético sabe que tem de racionar os hidratos de carbono, mas só o faz se quiser, porque cada um decide como quer viver e como quer morrer” ou “quando vamos para o campo, geralmente não vamos vestidos como um apicultor pelo eventual risco de sermos picados por uma abelha”, desvalorizando a natureza contagiosa deste vírus. As denúncias têm-se acumulado na Ordem dos Médicos, tendo esta já aberto quatro processos aos Médicos pela Verdade.

À parte desta cegueira, existe já uma intensa luz ao fim do túnel, a cinco dias do fim de ano, o Dr. António Sarmento, diretor do serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de S. João, a primeira pessoa a receber a vacina BioNTech-Pfizer no país, é a figura do dia e símbolo da esperança no amanhã.

Hoje temos um plano oficial de vacinação já a ser aplicado, mas relembro o início desta etapa, quando surgiu uma proposta preliminar que gerou enorme celeuma, dado que os critérios de priorização incluíam apenas pessoas entre os 50 e os 75 anos com doenças graves, funcionários e utentes de lares e profissionais de saúde em contacto direto com casos de Covid-19.

É certo que não há critérios unânimes, mas excluir o grupo etário com maior risco de mortalidade e de desenvolver doença clinicamente grave, não seria, à partida, o mais sensato e o que é certo é que essa proposta não foi avante. Outro tema que, inevitavelmente, tem tanto de polémico como de subjetivo, é a definição de doença grave, pelo que a tarefa levada a cabo pela comissão de especialistas nomeada, de definir prioridades que garantam os princípios de equidade e justiça em saúde, não foi, de todo, simples ou desprovida de incertezas. Contudo, haverá sempre incertezas para que se possam alcançar certezas.

Esta é a altura em que uma grande parte de nós, saturados desta nova dinâmica, deseja ser vacinado o mais rapidamente possível. Ora, é aqui, de certa forma, está presente a analogia com a competição que a certo ponto se fez sentir no “Ensaio sobre a cegueira” por alimento, quando este se tornou escasso, e que nos elucidou de que quando o direito à vida está em jogo, a natureza humana deixa para trás determinados valores fundamentais. Porém, há uma gigante divergência entre a obra de Saramago e a realidade que vivemos. Na obra, os doentes são abandonados pelos profissionais de saúde que não aguentam a pressão e o risco iminente de contágio, sendo deixados à mercê das forças militares que, apercebendo-se do risco que correm, agem também de forma desumana. Por outro lado, nós contamos com profissionais de saúde incríveis, altruístas, resilientes, com elevadíssimo espírito de abnegação, tantas vezes relegando para segundo plano a sua vida pessoal e familiar, suportando turnos de trabalho intermináveis, pese embora a exaustão e sofrimento psicológico que daí possa advir – os verdadeiros heróis desta pandemia.

Resta-nos consultar o simulador online de data de vacinação disponibilizado pela DGS e, acima de tudo, acreditar que em 2021 todos veremos a luz do dia!