Connect with us

Crónica

Os olhos do Tempo

Published

on

Grandes ações nunca são reconhecidas no seu tempo, e muitas pessoas ficam sugestionadas com casos como Monet, Van Gogh ou Galileu, que apenas tiveram o devido reconhecimento pelos seus feitos e obras após a morte, vivendo a sua vida em miséria.

Aristides de Sousa Mendes nasceu em Portugal em 1885, e mais tarde licenciou-se em Direito, seguindo a carreira diplomática.

Teve várias delegações consulares, passou por Zanzibar, Guiana Britânica, Brasil, EUA, Luxemburgo e Espanha, mas o ponto de viragem na sua vida surgiu quando, em 1938, Salazar o nomeou cônsul de Portugal em França, mesmo antes do início da Segunda Guerra Mundial.

Portugal era considerada uma nação neutra na Segunda Grande Guerra, contudo, o governo não hesitou em enviar a todos os diplomatas portugueses a “Circular 14”.  Neste documento constavam informações referentes à proibição de atribuir vistos, até ordem contrária, a refugiados judeus, russos, e apátridas, apesar de serem vítimas da perseguição nazi. A sua esperança de salvação residia então na obtenção de um visto consular que permitisse atravessar fronteiras. E foi aqui que Sousa Mendes deixou a sua marca na história.

Mesmo conhecendo a “Circular 14”, não se conformou com tal documento, e resolveu atribuir vistos sem olhar à raça ou religião. Esta sua desobediência revelar-se-ia salvífica para centenas de judeus que escaparam ao genocídio nazi, no entanto, para Sousa Mendes, foi o princípio do seu fim.

Descoberto em 1940, para além de demitido da função de cônsul, perdeu também o direito de exercer a carreira de advogado, o que tornou complicada a tarefa de sustentar uma família de 12 filhos. Esta situação já de si difícil, ainda se agravou mais após a morte da mulher, obrigando os filhos do ex-cônsul a emigrarem com a ajuda da Comunidade Judaica de Lisboa, deixando-o totalmente sozinho.

O resto da vida de Aristides, obrigado a vender tudo quanto possuía para sobreviver, foi um misto desolador de extrema pobreza e solidão. Apesar de ter salvo da morte e do genocídio centenas de seres humanos, a vida não o recompensou na medida da sua abnegação, coragem ou generosidade.

Indubitavelmente, foram precisos muitos anos, sob o olhar penoso do Tempo, para que, finalmente, o merecido reconhecimento dos seus atos acontecesse.

Foi declarado “Justo entre as Nações” no Memorial do Holocausto, em Jerusalém, em 1966.

Porém, no seu próprio país, apenas em 1983 a título póstumo foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem da Liberdade, e, em 1986, o então Presidente da República Dr.  Mário Soares, fez um pedido de desculpas público atribuindo-lhe, no ano seguinte, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Mais recentemente, a associação sindical dos diplomatas portugueses criou um prémio com o seu nome e repousa no Panteão Nacional, tendo-se realizado a cerimónia de concessão de honras no Panteão em outubro de 2021.

A memória dos seus atos e da sua coragem permanece sob olhar atento do Tempo, eterna e perpetuada nos sobreviventes ou descendentes de todos os que foram salvos, e que em vários pontos do mundo são testemunhas vivas de que a bravura de um só Homem pode mudar muitos destinos, para sempre.

Artigo da autoria de Inês Cardoso

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *