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Artigo de Opinião

Sombras do Passado

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Perplexidade. Foi esse o sentimento que tomou conta de mim quando, de manhã, liguei a televisão para descobrir que António Costa conquistara a 2ª maioria absoluta da história do Partido Socialista; não obstante, os meus parabéns ao PS e a António Costa pela vitória expressiva.

Neste período tão crítico, com o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) ao virar da esquina e o fantasma da inflação já a fazer-se sentir no outro lado do Atlântico, os destinos de Portugal e de 13 mil milhões de euros ficam entregues a um só partido – um partido que, pela mão do nosso conhecido José Sócrates e numa conjuntura macroeconómica e política semelhante à atual, levou o país à bancarrota.

Não sou grande fã de extremismos, quer de esquerda (PCP, BE), quer de direita (Chega); é da minha opinião, no entanto, que ambos são benéficos e importantes para a democracia. Será então quase bizarro afirmar que fiquei duplamente preocupado com os resultados destes partidos. Por um lado, se já previa que o Bloco seria penalizado nas urnas, muito por culpa do chumbo do Orçamento de Estado e em parte pela retórica de Catarina Martins durante a campanha, nunca pensei que o golpe fosse desferido com tanta força na bancada parlamentar dos bloquistas – agora reduzida a ¼. Seguindo essa linha de pensamento, esperava que, na eventualidade de uma vitória socialista, fosse o PCP o principal responsável por manter o PS “na linha” durante esta próxima legislatura e contribuir para a pluralidade de ideias, medidas e soluções para o país neste 4 anos que se avizinham – qual não foi o meu espanto quando vi que também a CDU tivera a sua bancada parlamentar reduzida para metade. A esperança de que o PS (caso saísse vitorioso) fosse obrigado a assinar acordos com o PCP e com o BE, o que pelo menos garantiria um certo escrutínio da ação governativa dos socialistas, desaparecera.

Por outro lado, preocupa-me o facto de o Chega ter sido a terceira força política mais votada por uma margem folgada – André Ventura terá que, desde já, agradecer a António Costa por o ter ajudado na tão difícil tarefa de “vender” as ideias do partido ao eleitorado português. O leitor poderá estar a pensar que estou “louco”, mas a verdade é que este resultado da extrema-direita só beneficia dois partidos: o próprio Chega e o PS.

Numa pequena nota, em relação aos restantes “partidos pequenos”, é com muita pena que vejo o PEV e o CDS ficarem de fora do Parlamento – a ausência dos “Verdes” deve-se sobretudo ao mau resultado da CDU, mas espero que os centristas tirem algum tempo para refletir sobre um novo rumo para o partido e reestruturem o seu programa, para que possam tentar regressar ao Parlamento o mais rapidamente possível. Quanto aos restantes partidos, foi notório o “esvaziamento” do PAN: o famigerado “voto útil” e o facto de as preocupações ambientais fazerem agora parte da agenda de quase todos os partidos (o que é um facto muito positivo e demonstra que a nossa democracia ainda funciona) terão desviado votos do partido. No entanto, o facto de Inês de Sousa Real ter colocado na sua lista de prioridades os animais e o ambiente à frente dos jovens mostrou o quão risível é o setor mais radical do programa do PAN – espero que retirem as ilações necessárias deste resultado e que reformulem a sua linha de pensamento. Falando ainda dos jovens, contribuíram com um número significativo de votos para o outro grande vencedor deste lote de partidos – a Iniciativa Liberal, que elegeu 8 deputados (opiniões quanto ao que os liberais têm reservado para esses mesmos jovens, especialmente no que diz respeito ao Ensino Superior, ficam reservadas para outra altura). O Livre conseguiu eleger Rui Tavares por Lisboa – a sua boa prestação na ronda de debates eleitorais, a coerência e a abertura ao diálogo com que se apresentou na campanha surtiram efeito. Não dedicarei muito tempo a falar da derrota do PSD (que, pessoalmente, me apanhou de surpresa; tinha a sensação de que a luta iria ser renhida e que Rui Rio até teria condições para ser primeiro-ministro); essa foi pesada, deixou Rio knockout e exige uma reflexão sobre o futuro por parte dos militantes sociais-democratas.

Sobra, então, o PS – e António Costa, que soube utilizar o chumbo do Orçamento a seu favor. Um António Costa desgastado, que foi o principal responsável pelo chumbo do Orçamento do Estado ao ter destruído todas as pontes de diálogo (especialmente à direita, com o PSD). Um António Costa que, durante a campanha, se contradisse várias vezes e que chegou ao ponto de deturpar o programa do seu principal adversário. Um António Costa que só queria a maioria absoluta, e que se recusava a falar com os outros partidos numa semana (acusando os partidos à sua esquerda, antigos parceiros, de serem “irresponsáveis” e de “não serem de confiança”), mas na semana seguinte já só queria dialogar com todos (ou quase todos). Um António Costa que mais parecia o apresentador de “O Orçamento Certo”. Um António Costa que protegeu um ministro da Administração Interna incompetente durante anos. Um António Costa que pretende colocar (ainda) mais dinheiro numa companhia moribunda, que serve maioritariamente os interesses de uma franja do território nacional. Um António Costa que viu Portugal manter-se numa espécie de coma económico e social, que gerou um “pseudo-crescimento” que, talvez num outro mundo fantasioso, nos permitisse voltar a competir com o resto da Europa (não permite e, a este ritmo, continuaremos a ser ultrapassados pelos países de Leste). Pior: a última maioria absoluta do Partido Socialista deveria estar bem presente na nossa memória coletiva.

Impõe-se, então, a questão: porque demos a António Costa a maioria absoluta? Não haveria mesmo outra alternativa? Outro destino para o nosso “voto útil”? Será que nós, portugueses, temos memória curta? Ou até nos lembramos, mas já não nos importamos? Será que nos esquecemos dos tempos da troika? Quereremos um novo BES? Uma nova EDP? Se voltarmos ao tempo da troika, a culpa não será “deles” – será nossa.

Escolho não acreditar nisso. A explicação, do meu ponto de vista, é muito mais simples:

1) António Costa sabia o que tinha de fazer para conseguir esta votação: à sua esquerda, criou a ideia de que a queda do Governo fora da exclusiva responsabilidade dos seus parceiros – especialmente do Bloco, a quem “roubou” muitos votos –, fez o papel de vítima e disse que tanto comunistas como bloquistas não eram de confiança. À sua direita, utilizou a má prestação de Rui Rio nos debates e algumas afirmações ambíguas do líder social-democrata contra o próprio PSD, encostando-o ao “papão” do Chega; ao mesmo tempo, “alimentou” o partido de André Ventura para não só tirar votos ao PSD, mas também complicar as contas à direita no caso de uma eventual vitória social-democrata.

2) A influência do Estado na nossa política económica aumentou exponencialmente ao longo das últimas legislaturas. Ao fugir dos problemas estruturais do país e implementar soluções fáceis e sempre a pensar a curto-prazo (que são tudo menos soluções), agravou a dependência da sociedade portuguesa do Estado a muitos níveis. Problema: essa dependência só se irá agravar se António Costa mantiver para o país a estratégia que tem seguido nos últimos 6 anos. António Costa conseguiu a tal maioria absoluta porque muitos portugueses tiveram (e com razão) medo do que uma mudança no poder causaria neste momento conturbado da nossa história. Mas seguindo este rumo, a economia portuguesa irá, eventualmente, ficar “ligada à maquina” e, quando colapsar, seremos nós todos, portugueses, a sentir na pele a crise (mais uma vez).

Falo como jovem: não quero ter de sair de casa dos meus pais aos 30 anos. Não quero ter andado a estudar e a esforçar-me, a sacrificar tantas coisas durante 15 anos para receber um salário miserável. Não quero ter de andar a saltar de emprego em emprego. É isto que se tem perpetuado ao longo das últimas legislaturas e António Costa e o Governo pouco ou nada fizeram para o combater; se nem com Bloco e PCP ao seu lado resolveu estes problemas, que confiança tenho para pensar que “agora é que é”?

Ninguém perguntou a António Costa o que faria se tiver de “apertar o cinto” (como muito provavelmente terá de fazer). As promessas da “bazuca”, de diminuições do IRS e de aumentos de pensões e salários imediatos falaram mais alto. E o futuro? Portugal continuará navegando à deriva na cauda da Europa. Esperemos que a próxima tempestade não mande o barco ao fundo – outra vez.

Artigo da autoria de Miguel Garrido