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Crónica

SENHORA DE VERMELHO E AR ELEGANTE

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Embalada pelo deslize do movimento dos carris, escrevi este texto para não esquecer todas as indagações cerebrais e ondas de sentimentos que molharam a minha alma, naquele momento curto, mas intenso. Trata-se de uma situação passageira da vida, que muitos andantes podiam não ter experienciado ou, pelo menos, deixar que fosse uma experiência para a vida.

Mal este momento aconteceu, peguei rapidamente no telemóvel e fiz uso daquilo que um aparelho destes pode fazer: guardar comunicações e memórias.

Naquele dia, mais um de monotonia comboística para o mesmo destino, agarra-me fortemente no braço, num movimento rompante despercebido do meu olhar, uma senhora de vermelho e ar elegante, que se desequilibrou ao sentar-se ao meu lado. Tínhamos aqui alguém bastante consciente das maldades que vivem nas almas e, por esta razão, explicou-me que o seu equilíbrio não está em boa forma, numa tentativa de propocionar um não julgamento da minha parte. Nunca o iria fazer, desequilibrados somos todos nós e desequilíbrios temos em qualquer momento da viragem da carruagem.

Pensei eu que seria o fim de mais uma conversa ocasional, que o meu cérebro iria apagar eventualmente por falta de espaço. Contudo, a chama da conversa continuou e de um momento para o outro, sem eu questionar nada, a senhora de vermelho e ar elegante, expulsou elegantemente as cicatrizes não saradas da sua alma vermelha.

Foi uma filha não querida, não pretendida, não filha. Contudo, obrigou-se a tomar conta da sua não mãe e da sua mais querida irmã que tinha um atraso mental. Tudo isto durante 16 anos, que se encerraram dentro de uma casa, sem nunca poder respirar a vida exterior. Por consequência da idade, a sua não mãe já morrera, dando espaço para esta não filha respirar.

Conta-me a senhora de vernelho e ar elegante, que entrou numa depressão profunda, que lhe deixou rastos de escuridão na sua vida, que não deveria ter sido assim. Todo este esforço psicológico a que foi sujeita, deixou-a desmaiada para a vida. Deixou de falar e mal se conseguia equilibrar na altura. Sentia-se presa a um passado que pesou.

Apesar de tudo, a sua voz ativa sempre viveu dentro dela e, por isso, conseguiu deixar sair novamente a senhora de vermelho de ar elegante que estava dentro dela. Ainda continua com desequilíbrios físicos e mentais, mas conseguiu uma grande vitória. Libertar-se do passado e do medo do preconceito dos outros.

Ela chorou à minha frente. À frente de mim, um alguém qualquer que nunca viu e talvez nunca mais irá ver.

Trata-se de um acontecimento rompante, mas que permite levantar uma série de questões, sendo uma delas: o que faz alguém que não te conhece de lado nenhum falar de tudo isto? Sinto-me um ser privilegiado por ter sido objeto de partilha de algo tão doloroso.

Penso que foi uma ajuda para alguém que finalmente conseguiu falar dos seus problemas, alguém que sente esta necessidade. Tudo isto me fez pensar na quantidade de pessoas, que agora estão na mesma situação e que lhes custa pedir ajuda.

Nós nunca podemos ter medo disto, pois é o ato mais nobre que podemos ter. Sim temos medo que nos julguem. Sim, podem julgar, mas com certeza irá aparecer alguém que vai ajudar e ser ajudado. Aqueles que julgam também são prisioneiros de depressões, ansiedades, etc. E são ainda mais prisioneiros de uma sociedade que não os deixam ser livres de corpo e alma, naquilo que pensam, sentem ou fazem.

Não tenhas receio de te libertar, tem medo de não te dares à liberdade que o teu corpo pede. Sejam todos uma senhora de vermelho de ar elegante.

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