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Crónica

“MARQUÊS DAS ILHAS” ROUBA “PIRILAMPO”

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Beatriz Hierro Lopes

Beatriz Hierro Lopes

 

Perdoar-me-á, o meu caro leitor, pela forma desavergonhada com que me açambarco de um subtítulo naturalmente devedor da obra Crónica de una muerte anunciada, de Gabriel García Márquez. Escritor que, por certo se recordará, graças ao seu estilo foi aclamado autor do «realismo fantástico»; com efeito, a presente crónica é também ela dominada por um realismo que aqui chamaremos de mágico, por mero capricho meu.

Peço-lhe que se detenha por breves instantes sobre a paisagem humana que domina a praça portuense; queira o meu distinto leitor reter na sua memória aquele dia em que, inesperadamente, avistou um homem de porte esguio, lunetas escurecidas, sombrero castanho-claro, passo diletante e aclamado (com ou sem justiça, o que para aqui pouco importa) como Grande de Letras. Está a ver quem é?

É ele mesmo! O defensor dos direitos, inegáveis, irrevogáveis e inalienáveis, à habitação! Agora que nos fixamos sobre a personagem principal desta crónica, poderemos prosseguir com a narração dos factos a que este título se compromete. O «Marquês», como vem sido apelidado por alguns dos seus ex-precários é, naturalmente, senhor de uma imensa inteligência. E contudo, sem grandes surpresas, encontram-se sob as suas ordens rapazes e raparigas, licenciados nas Ciências Humanas ou nas Artes (isto é, arquitectos – esses desalmados escravos da sociedade pós-moderna – fotógrafos, cineastas ou, pelo menos, estudantes de cinema, entre outros pobres diabos) a quem o excelentíssimo senhor Marquês das Ilhas acena efusivamente, com estágios remunerados pela Instituição x ou gentilmente cedidos pela instituição y, ao que se seguirá, como o próprio afirma, confirma e reafirma, a possibilidade – qual possibilidade? A certeza, ou não valesse cada sílaba do Senhor Marquês pelo menos cem contos de moeda antiga – de um contrato de trabalho com teto máximo nos quinhentos, quiçá seiscentos euros mensais; sem olvidar, no entanto, que entende por «contrato» não um «contrato» real, mas uma prestação mascarada de recibos-verdes. Sobre os mesmos, como é sabido, o empregado terá de fazer os seus descontos para a segurança social, ficando a receber tanto ou muitas vezes menos do que os súbditos do marquesado, os que vivem miseravelmente nas ilhas que constituem o domínio de tão excelso Senhor.

Imagem não identificada. De The Library of Nineteenth-Century Photography

Imagem não identificada. De The Library of Nineteenth-Century Photography

Assim, licenciados, pós-graduados ou mestres, audazes aventureiros, lançam-se à empreitada, trabalhando de sol a sol em prol dos direitos a uma habitação condigna. Acalentando secretamente o sonho de um dia poderem vir a ter um pequeno apartamento alugado sem que, para isso, tenham de recorrer aos apoios estatais à juventude que já nasceu falida.

O Senhor Marquês das Ilhas, tantas vezes visto, dominando impecavelmente o seu jeep, por norma estacionado perto das suas ilhotas, decidiu organizar um jantar para sessenta pessoas, no passado dia vinte e cinco de Abril, escolhendo, para o efeito, o restaurante «Pirilampo». Os donos, gente honesta e de palavra, aceitando a do Marquês, preparam a refeição com esmero, contado nessa noite com as seis dezenas de convivas que ali iriam saborear faustoso repasto. O próprio Marquês das Ilhas, tendo ido lá almoçar no mesmo dia e saído sem pagar, assegurou que ajustariam contas por hora do jantar, o que nunca se viria a concretizar, pois não apareceu vivalma – quanto mais seis dezenas.

O Marquês das Ilhas votaria, desta forma, o «Pirilampo» às moscas, privando-o, inclusive, da sua aguardada presença. E é aqui, como em vários outros casos envolvendo ou não salários em atraso, promessas de pagamento nunca concretizadas, que o Senhor Marquês das Ilhas se faz valer da prerrogativa que lhe seria própria caso os republicanos jamais tivessem pisado solo luso. É que, como o meu caro leitor sabe: um Marquês nunca deve nada a alguém, quem deve é o Rei, ou, neste caso, o Presidente da Câmara, que assim, sem saber, se torna no maior caloteiro desta cidade.

Caso tenha trabalhado para o excelentíssimo senhor das Ilhas, desengane-se: dir-lhe-á que é a Câmara Municipal que não paga, a mesma que, justiça lhe seja feita, é, neste caso, inocente, por total desconhecimento das actividades a que sua quase-realeza-das-ilhas se advoga. Claro: tudo em prol da defesa dos direitos cívicos, os mesmos que tão vilmente desdenha quando o caso é pagar pelo trabalho honestamente realizado.

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