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Crónica

A REALIDADE QUE TU NÃO QUERES CONHECER

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Daniela Silva OliveiraDiz-se de boca cheia que todos nós em algum momento das nossas vidas passamos por uma situação reveladora, uma situação tão forte que é capaz de nos mudar do dia para a noite.

Não acredito que haja consenso em relação ao que essa experiência possa ser. Acho que pode ser uma morte, um nascimento, um salvamento, um milagre médico, um chamamento… Mas o que sei eu?

O relato que segue é forte e não tenho a certeza se vai ser atingido por toda a gente. Faltam-me as palavras e tenho um nó na garganta. Tenho imagens e sons que acho que me vão perseguir para o resto da vida.

Estava a viver uma das melhores experiências de sempre. Um interrail. Um interrail pelos Balcãs, um pouco fora dos padrões. Dizia eu e as amigas que me acompanharam que ia ser «a melhor viagem de sempre». Liberdade. Conhecimento. Novas Realidades. Aventura. E o interrail foi tudo isto. E foi muito mais.

A partida foi Sofia, o destino era Belgrado. Queixamo-nos da podridão do comboio. Porque era sujo, porque não era confortável, por isto e por aquilo. Uma viagem noturna e adormecemos, por fim.

Às 4h da manhã tivemos o despertar mais aterrador das nossas vidas. O comboio parou numa estação da Sérvia. Acordamos com gritos, confusão, luta, choro, um mar de gente. Centenas de pessoas empurravam-se para entrar no comboio. Houve pancadaria, havia choro de crianças. Não sabíamos o que se passava. E tivemos medo. Tivemos muito medo. Éramos três raparigas sozinhas num compartimento e não havia polícia ou fiscais. Só havia um mar de gente que gritava em várias línguas e se empurrava.

Fechámos a porta do nosso compartimento. Estávamos assustadas e sem saber o que fazer. Vimos um medo indiscritível na cara daquelas crianças que naquela idade só deviam ter medo do escuro e de monstros debaixo da cama. Uma delas, apertada no corredor, com os seus oito anos, olhou pela nossa janela e com toda a força do mundo abriu a porta do nosso compartimento. Gritou ‘Pai’. Trepou a janela e saiu por aí mesmo. Uns braços agarraram-na. Mais famílias invadiram o compartimento. Não sabíamos o que fazer. Não nos mexemos. O medo paralisa e bem.

A família instalou-se. Um homem. Duas mulheres. Três crianças. O mais velho com uns sete anos, a mais nova com apenas alguns meses de vida.

Do lado de fora, aquele pai que agarrou a criança pedia-nos para levarmos o filho. Desesperado inventava formas para passar o menino de volta pela janela. Dizíamos que não. Perguntávamos porquê. O menino juntou as mãos, pedia-nos ‘please’. Vimos e sentimos desespero puro. Doeu-nos o corpo todo. Doeu-nos o coração. Mas tivemos de fechar a janela e dizer que não. Ainda hoje me pergunto o que aconteceu àquela criança que não era mais inocente, que era mais adulta que nós todas. Queremos acreditar que seguiu no próximo comboio. Que conseguiu escapar à merda de vida que lhe saiu em sorte.

O comboio voltou a andar. Na cara das crianças do nosso compartimento ainda havia medo e confusão, mas na dos adultos vislumbrava-se alívio.

Ganhámos coragem e ganhámos a fala. Perguntámos em inglês o que se tinha acabado de passar. O homem brincou, disse que era um ataque de zombies. Não conseguimos rir. Então ele explicou, com toda a naturalidade do mundo, que eram refugiados, que vinham do Afeganistão e iam para Belgrado. Caiu-nos a ficha. Houve um baque no nosso estômago. Houve lágrimas que ficaram presas em sítios que nem sabíamos que tínhamos. E ele quis saber de nós. Dissemos que estávamos só a viajar. E sentimos vergonha, sentimos vergonha por nos acharmos fúteis. Por irmos à procura de nós próprias, quando aquelas pessoas, aquelas crianças que estavam mesmo ao nosso lado viviam numa realidade totalmente paralela e iam à procura de uma nova casa, de uma nova vida, fugidos da guerra, fugidos da fome, fugidos de horrores que não passam sequer pela nossa cabeça.

Chamamos nomes a nós próprias, à nossa sociedade fútil que se queixa de tudo que no fundo não é nada. Nada de nada. Revoltamo-nos connosco, com a vida, com um Deus em que nem sequer acreditamos.

Sentimos que também nós perdemos um pouco da nossa inocência, que mudamos no momento em que os nossos sentidos foram capazes de abarcar aquela realidade.

E então pessoas sem nada pegaram numa única mochila, tiraram um pacote de bolachas, sorriram para nós e cheias de bondade ofereceram-nos. A nós que tínhamos sacos com comida e não lhes perguntamos se tinham fome.

Percebemos que não somos nada, percebemos que longe da vista é longe do coração. Percebemos que demorámos dias a falar sobre aquilo entre nós, porque conhecemos uma dor a que não sabíamos dar nome. E percebemos que todos deviam ter este momento na vida. De dor, de vergonha, de raiva. Talvez isso nos faça crescer. Talvez isso nos faça ter a coragem necessária para mudar o mundo.

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