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Sociedade

A “gentrificação” da moda em segunda mão

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Com o fácil acesso à informação que nos proporcionam a internet e as redes sociais, tem-se verificado uma consciencialização da população acerca dos malefícios resultantes do mercado da “fast fashion”, a moda que se produz, vende e descarta rapidamente. Procurando estar a par das modas, a “fast fashion” é feita com materiais de pouca qualidade e por trabalhadores, grande parte das vezes menores de idade, sem qualquer tipo de condições para a execução do seu trabalho de forma condigna.

Tal surge da necessidade de dar resposta à diminuição dos “trend cycles”, que apesar de remontar a tempos anteriores do domínio do espaço digital, se agravou com o seu surgimento e difusão.  O constante bombardeamento de determinados estilos ou peças de roupa, faz com que rapidamente as pessoas se cansem de ver a mesma coisa e daí desperte a busca por algo novo. A roupa passa a ter de ser conceptualizada, confecionada, distribuída e posta à venda numa questão de semanas. Este padrão de produção e consumo tem consequências diretas no bem-estar do planeta.

Assim sendo, especialmente as camadas mais jovens, já muito mais abertas e com vontade de aprender e confrontar problemas estruturais menosprezados pelas gerações anteriores, contribuíram para o aumento significativo das compras em segunda mão. Uma vez que este crescimento se verificou em grande parte em setores da população com maior poder económico, pode-se questionar se efetivamente está aqui em causa uma gentrificação deste mercado.

Gentrificação do mercado

Por gentrificação entende-se de o processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos residentes com menor poder económico para outro local e da entrada de residentes com maior poder económico. De facto, este conceito surge no contexto geográfico e imobiliário, mas tem sido estendido em diferentes contextos, sendo o mercado da moda um deles.

A gentrificação acaba também por trazer consigo consequências negativas, uma vez que ao haver grandes fluxos de compras em locais de venda de moda em segunda mão pelas classes mais abastadas, não resta “espaço” para as pessoas e sistemas que surgiram a priori e que já faziam das compras em segunda mão prática recorrente, por esta ser muitas vezes a sua única possibilidade.

É incontornável a menção às plataformas de venda em segunda mão, que surgiram fruto desta crescente no mercado e que se demonstram das mais problemáticas dentro do setor. Especialmente com a pandemia, em 2020, estima-se que o número de utilizadores destas plataformas tenha aumentado em 36.2 milhões de pessoas, sendo que se perspetiva que este mercado registe um aumento de valor para quase o dobro nos próximos cinco anos, passando a valer 51 biliões de dólares, face aos 24 biliões de dólares em que é avaliado atualmente.

Em plataformas como o Depop, mais de 90% dos seus utilizadores têm idade inferior a 26 anos. Os jovens vêem-no como possibilidade de fazer dinheiro e, aproveitando a conjuntura e indo de encontro ao que é mais procurado, fazem uma curadoria de roupa que adquirem nos meios tradicionais de compra em segunda mão, nomeadamente em lojas físicas, a preço muito baixo, vendendo-o posteriormente por duas ou mais vezes esse valor inicial nestas plataformas. Criou-se aqui um nicho de mercado.

 

Esta franja da população, geralmente privilegiada e que pode escolher a segunda mão ou marcas sustentáveis, não adquirindo a sua roupa neste formato por necessidade, acaba por muitas das vezes adotar uma perspetiva de certo modo radical face a este estilo de vida, um “tudo ou nada”, o que se reflete numa inferiorização das pessoas que continuam a fazer compras em marcas de “fast fashion”. Tal acaba por ser peculiar, quando muitas vezes, a subida dos preços no mercado da segunda mão, fruto do seu crescimento incomensurável levaram ao retorno à “fast fashion” como forma mais em conta para aquisição de vestuário.

Com a popularização de marcas com estilos de produção mais sustentáveis, o preço do produto tenderá a ser superior ao que os consumidores estão habituados. Com esta massificação da “fast fashion” muitos acabam por não ter capacidade financeira para a poder adquirir.

Muitas vezes, porque é barato e não há qualquer tipo de sensação de culpa interligada à compra em segunda mão, verifica-se a compra igualmente massiva e não ponderada, ainda de acordo com os “trend cycles”, mas a mais baixo custo. Isto acaba por ser igualmente prejudicial, limitando as possibilidades de escolha daqueles que realmente necessitam destas peças de roupa e tornando também menos culposo o seu descarte futuro. Acaba por se manter a mentalidade intrínseca à “fast fashion” num modelo “slow fashion”, dado o seu marcante enraizamento na sociedade de hoje, e tal reflete ser contraproducente.

 

Escrito por Beatriz Areal dos Santos

Revisão por Beatriz Oliveira e Inês Santos.