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Artigo de Opinião

O retorno do que nunca se foi

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Os últimos dias têm sido muito tensos para a comunidade europeia. Uma guerra que já chega a proporções catastróficas ameaça o establishment ocidental e coloca em oposição a maior potência militar do mundo contra o maior bloco económico da atualidade. A comoção no momento é global: instituições caridosas estão a ser criadas, sanções a tudo que envolve a Rússia não param de ser estabelecidas, armas e alimentos são cedidos à Ucrânia pelos países europeus. Finalmente, a guerra faz seu dramático retorno…

À Europa.

A guerra nunca cessou. Ela sempre existirá. Guerras estão a acontecer no Médio Oriente todos os anos, guerras civis estão a acontecer em países da África subsariana todos os anos. Ditaduras foram erguidas, pessoas inocentes foram mortas, ricos ficaram mais ricos, e o que é que tudo isso importa? Nada. Porque a vida dessas pessoas evidentemente vale menos: são de países que nem sequer são considerados civilizados pelo Ocidente, são fundamentalmente vistos como animais.

A visão desses povos como permanentemente subdesenvolvidos não existe à toa – alguém tem que ser pior do que nós, e esse alguém é o outro. O outro está sempre em guerra, porque o outro é incivilizado, o outro não é como nós. Nós somos civilizados, nós somos o bem, nós somos gente.

O máximo de comoção apresentado pelas pessoas quanto às recentes tentativas israelitas de conquistar (mais) territórios ilegítimos foi colocar um emoji da bandeira da Palestina em frente ao seu nome de jovem doomer no Twitter. A guerra civil no Iémen, que está a acontecer até hoje, nem é lembrada como uma tragédia recente e tem um tratamento rotineiro por parte dos media. A frase “10 mortos em bombardeamento no Iémen” já nem surte efeito empático nas pessoas por mais de um minuto.

Falando na Guerra Iemenita, todo o desastre humanitário que lá está a acontecer desde 2015 é exponencializado pela intervenção da Arábia Saudita, que é a principal responsável pelas baixas do conflito. Contudo, não são apenas as suas mãos que estão manchadas de sangue. O Reino Unido vendeu-lhe bombas. Ou seja, esse conflito, assim como o surgimento de ditaduras militares na América Latina durante a Guerra Fria, as outras guerras no Médio Oriente, as guerras no sul Asiático e muitos outros conflitos pelo mundo fora, têm um dedo sujo do Ocidente.

Sim, esse é o mesmo Ocidente detentor dos ideais supremos de paz e harmonia, o mesmo Ocidente superdesenvolvido ideologicamente, portador de ideais democráticos e diplomáticos exemplares. Esse mesmo Ocidente não se importa em sacrificar centenas de milhares de vidas e a liberdade de milhões por mais dinheiro, por mais influência, por mais poder. O poder sempre foi o que quis o Ocidente. Não é coincidência que as ações no mercado financeiro valorizam, e muito, durante as guerras. A ONU não tem por objetivo manter a paz mundial, mas manter a atual hegemonia e hierarquia do poder.

Fonte: Fundstrat, Bloomberg – As ações de mercado em relação às guerras

O Ocidente tem por base uma cultura de guerra. Esse mesmo Ocidente foi erigido por uma cultura cristã de intolerância, de aversão ao diferente, de autoafirmação perigosa. Esse mesmo Ocidente hoje chora porque um dos seus está a invadir outro dos seus.

Mas não chora porque há mortes, pois nunca se importou com a sua presença quando interveio noutros conflitos. Chora porque um dos seus não está a disfarçar sua participação em forma de vingança (e.g a invasão dos E.U.A no Afeganistão como resposta ao 11 de Setembro, que curiosamente aconteceu porque os próprios Estados Unidos financiaram previamente os grupos terroristas), ajuda humanitária (e.g a criação forçada de Israel num território já ocupado) ou simplesmente precaução (e.g ampla militarização dos E.U.A): se insere na guerra de forma nua e crua, se expõe. a Rússia invade a Ucrânia por ganância, e veste essa ganância como uma roupa que tem de ser vista por todos. Hoje, o Ocidente chora por falta de sutileza.

Claro, o discurso de Putin é que ele está a salvar a Ucrânia do neonazismo, a liberar as regiões que reconheceu independência. Porém, a visão geral não é essa, e por um motivo óbvio: não é isso que está a acontecer. Todos conseguem ver isso, e é este o ponto principal – o Ocidente, como portador dos ideais de paz e justiça, nunca está errado. Portanto, nenhum dos crimes de guerra cometidos em conflitos que só adentraram por questões económicas são questionados. A população é alienada.

Tão alienada que não percebe que a dinâmica dialética de oposição constante entre dois objetos, base de seus ideais ideológicos modernos, é a mesma que não a permite se sensibilizar por esses crimes. Porque aprendemos desde cedo o que é bom (nós) e o que é mau (os outros). Temos em mente que nós nunca faremos o mau, e vice-versa. Sempre vemos o preto e o branco num mundo cinzento.

Não procuro por meio deste texto justificar a atrocidade desumana que está a acontecer. Procuro apenas chamar a sua atenção, leitor, para o facto de que Putin não é o único louco aqui. Também somos loucos nós, que só damos importância à guerra agora, que desejamos uma paz global realisticamente inalcançável, que preferimos ignorar as nossas mãos sujas. Estamos todos imersos nessa hiper-realidade, construída por governos pseudodemocráticos que procuram sempre justificar as suas ações com o preceito de evitar uma distopia iminente, mas que pode ser evitada. Distopia que, paradoxalmente, já vivemos todos os dias; compartilhamos todos, afinal, o mesmo mundo. Assim, resta apenas abrir os olhos e torcer para que tenhamos a consciência de fazer o melhor.

Artigo da autoria de Olavo Freitas