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Crónica

CRISE DE IDENTIDADE

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Se a avaliação da identidade surgir de uma representação mental de um observador exterior, o que acontece normalmente é que se esse observador vê incongruências entre o que vê e o que pensa que devia estar naquilo que vê, entra em colapso. O assunto não tem muita importância. O dito observador, se quiser, informar-se-á acerca do que vê e das explicações que lhe derem sobre o assunto e logo perceberá, se quiser também, que afinal a identidade era outra.

Nada de novo, a identidade sempre foi relacional e, por isso, é normal que o jogo se repita. A identidade vive disto de posicionar um indivíduo num coletivo, ou de situar um coletivo em relação a outro. Tudo isto são peças móveis e enquanto se movem, mudam posições e mudam os seus próprios conteúdos. Perante tanta instabilidade é normal que a identidade funcione muito bem como heurística para refazer constantemente sistemas de coordenadas que posicionem essa arquitetura móvel. Quando estiver tudo baralhado estarão todos em crise de identidade e dirão, para resolver a tensão, que afinal a identidade é fragmentada, híbrida, compósita e outros adjetivos pertencentes a semânticas escorregadias e às coisas que não pertencem a taxionomias definidas e linhagens puras.

Parece que a identidade só se revela quando está em crise, ou porque alguém sente que está a perder o sentido de si por ser confrontado com outra coisa que não é da sua experiência, do seu mundo, e lhe pode provocar ao mesmo tempo, estranhamento ou sentimento de ameaça ou fascínio. Esse espanto, por breve que seja, pode levar a uma crise profunda de interrogação sobre a comunidade imaginada a que pensava pertencer, nação, etnia, religião ou o que venha ao caso. No tempo da portugalidade obtusa havia a raça, o dia da raça e a identidade lusitana da raça que tinha nascido nos Montes Hermínios como os cães (de raça) da Serra da Estrela. Felizmente a raça acabou (a dos cães não).

Stuart Hall, um especialista na matéria identitária, escreveu que a identidade se torna uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam[1]. Se esses sistemas culturais que nos rodeiam têm mais diversidade que a biodiversidade da Amazónia, como esperar outra coisa? É a vida. A identidade não resiste ao congelamento e só uma sociedade mesmo muito tradicional, isolada algures sem rede, é que encontraria sossego e conservadorismo. A modernidade dissolve e o sujeito anda meio descentrado, constantemente a olhar para luzes que piscam em lugares diferentes, identificando-o ou diferenciando-o por outras tantas diferentes obliquidades.

Agora estamos no tempo da globalização, essa bimby poderosa que possui qualidades especiais de tornar tudo igual e, ao mesmo tempo, mobilizar tudo que é diferente, distribuir pelo planeta e voltar a misturar: um galo de Barcelos pode beber coca-cola enquanto come sushi com cachaça num hotel do Dubai partilhando tudo instantaneamente com umas selfies que envia para o seu amigo canguru que é surfista na Califórnia mas que afinal está em Bombaim a fazer filmes. Complicando com a ajuda de David Harvey, geógrafo de confiança: à medida que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente equivale a tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão dos nossos mundos espaciais e temporais[2]. Tal e qual. Não há raízes, porque isso é coisa vegetal sempre cheia de terra e o local é apenas aquilo que dizemos que é sem pensar muito, tal como o ocidente é onde se põe o sol e o oriente é para onde ia o expresso.

Dito isto, já podemos olhar para a foto. O mundo espacial e temporal comprimiu-se para lá caberem umas casas velhas mais ou menos conservadas vindas do tempo das casas de lavoura com a porta carral, com o arco da porta da adega para o quinteiro, a casa e a corte das vacas. Atrás, aos bicos, paredes brancas e telhados pretos, está uma casa nova de estilo indefinido global/local. Ainda atrás, o edifício de uma fábrica, cor neutra, estilo genérico industrial. No campo da frente já houve quem trabalhasse quando precisou. Agora, trabalhar para aquecer é no ginásio e na corrida. Não consta que aqui haja problemas de maior e a vida segue a sua normalidade sem traumas identitários; tudo se percebe, tudo se explica, tudo se transforma e toda a gente sabe explicar o sentido das coisas. Ao ver-me fotografar, um senhor comentava que aquelas casas antigas (não velhas) eram muito lindas e que o resto estragava tudo. Perguntei porquê. Ficou admirado com a pergunta e deu dois passos enérgicos a centrifugar e a resmungar. Não é de cá e tem problemas de identidade, está visto. Deduzi que a condição local é importante para perceber o local. Faz sentido.

Vamos então embora que cinquenta metros adiante é tudo diferente disto e é preciso explicar outra vez com mais bibliografia e canseira da cabeça. Isto da paisagem ou do território, como quiserem, tem esta complicação suplementar: porque se muda de lugar, muda também o que existe, tomando sempre novas qualidades e outras tantas mudanças de que Camões fala referindo-se ao tempo (que passa diferentemente em todos os lugares).

[1] David HARVEY (1989), The Condition of Post-Modernity, Oxford: Oxford University Press.

[2] Stuart HALL (1987), “Minimal Selves”, in Identity: The Real Me,  ICA Document 6. Londres: Institute for Contemporary Arts, 1987.

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