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Crónica

ÁGUA PELOS CAMINHOS

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unnamedPor alquimia do fogo que o transformou em líquido, corre metal precioso pelos caminhos como se fora água para matar a sede dos campos. É uma longa história.

Pelo meio da aldeia onde antes ia um ribeiro quando era inverno e a chuva caía em grossas bátegas, fez-se uma calçada de pedras entre as muralhas das outras pedras dos muros das casas. Antes era um caminho de calhaus incertos marcados pelo sulco do rodado dos carros de bois abaixo e acima vezes sem fim. Agora são paralelepípedos regulares que os aros metálicos das rodas já não calcam.

Desde tempos que de si próprios se esqueceram, permaneceram aqui gerações de humanos arrancando à encosta tudo o que se podia desde os socalcos do fundo do vale, até aos matos das encostas e cumeeiras. Pedras e águas, terra e seiva, trabalho e pão. Por isso, fizeram-se muros para suster a terra dos campos; fabricaram-se carros de estrume para fazer crescer essa terra e fertilizar tudo o que nela se pudesse criar; exploraram-se as águas conduzidas por levadas para os linhares, os milharais ou os prados; rega de lima para combater o frio e a geada no inverno ou a secura do verão; caminhos para as bestas do arado e do carro do mato; regos para a água, açudes, poços, moinhos, lavadouros, fontes, bebedouros para os animais. Vidas de escravatura a contar os dias, o sol, a ameaça da trovoada, do granizo e das enxurradas; as rezas, sempre os deuses e os santos, o natural e o sobrenatural ajuntados para que a colheita não se perdesse, ou o lobo não levasse uma cabra da vezeira, o porco não ficasse doente, o bezerro viesse são, as vacas não se tresmalhassem nos montes, os ovos se abrissem para vidas novas nos dias certos. Tudo, absolutamente tudo, importante, os gravatos do monte, os feixes de caruma, as pinhas, os feijões a secar na eira, o feno guardado, as espigas no canastro, a horta, a urze e o tojo para a cama do gado, a lenha, as batatas na terra, os castanheiros, as réstias das cebolas. Tudo necessário, tudo sabiamente administrado, a escassez gerida até ao ínfimo, até à partilha da partilha, à guarda preciosa de uma quantidade inesperada da generosidade de um ano; para uma falta, dizia-se, para vender na feira, comprar um pipo de vinho, pagar o dízimo, um remédio para uma doença, quem sabe.

O azeite ácido para alumiar ao Senhor, o ramo da oliveira benzido para esconjurar invejas e trovões. Uma giesta em flor nas portas e nas janelas para enganar o maligno na noite do primeiro de Maio. Uma espiga para as encomendações das almas do purgatório; cinzas do lume para a sementeira da horta, esterco dos coelhos e das galinhas para as couves de todo o ano, as da ceia de Natal ou da lavadura da criação. Nos remansos dos ribeiros, nos pegos fundos, talvez umas trutas, um luxo para desfastiar. Ramos de loureiro para o fumeiro, cepos e raízes da carqueja para um lume forte, caruma ou maçarocas para acender fogueiras, lavouras de incêndios no inverno para reverdecer os pastos. Apanhar bolota, fazer carvão, ir à lenha e às pinhas, procurar amoras se as houver pelo fim do verão. Cortar o ramo maior do castanheiro ou de um carvalho para fazer um escano, consertar uma porta, procurar um tronco bem feito de vidoeiro para o eixo de um carro, para uns tamancos, ou um pião para a canalha.

Das cortes dos animais ao baldio; da ribeira represada lá no alto, aos lameiros empapados no inverno; da casa ao monte; dos caminhos aos campos, tudo, rigorosamente tudo se compunha ao longo dos trabalhos e dos dias, da soleira das portas à vastidão das encostas, ou à estrema dos matos, do baldio e das água da outra freguesia. Tudo se concatenava por tempos, por gerações, por milímetros de terra, por escadórios de socalcos e até nos penedos grandes e achatados como mesas que por aquecerem nas tardes de verão, podiam manter uma vinha onde a altitude e os frios já não consentiam não fosse o calor distribuído pelas pedras durante a noite, prodígios para uvas quase contadas uma a uma.

Não sei que mais queria dizer. Perdi-me na lista e ainda a tarefa ia a meio. Eram estas infinitas cadeias entre a gente e as terras, os lugares, os bichos, os céus, as pedras. Tantas ligações, tão fortes, tão repetidas por milhões de gestos e luas e sementeiras e centeios a crescer, que já não sabia onde partir a narrativa e voltar a começar.

E agora?

Agora são levadas perdidas pelos caminhos. Águas que se vão sumindo pelos buracos do saneamento e da drenagem pluvial; que se perdem em campos a monte ou erva mal nascida para uns poucos animais que há. Por séculos, vidas de privações e trabalho bruto que acabaram. Já não era sem tempo. Que se cale agora o bardo, a flauta das éclogas do pastor da arcádia, a escrita adocicada pelo murmúrio das corgas, pelo fresco das matas, a fartura das terras, o cantar dos camponeses.

Acabou. Está entendido? Pode-se orientar a bússola da nostalgia para outro tema, talvez os anjinhos, as crianças breves que morriam depois de um baptismo à pressa, uma gripe inesperada, um febrão, uma vacina que não havia, talvez frio, quem sabe mau-olhado ou inveja; deus as levou para si, vinde a mim os pequeninos. Que tema lindo para amaciar a dureza destas pedras, para temperar a retórica dos corpos dóceis dos camponeses, bestas de trabalho, sábios do ofício de ajardinar a paisagem, serem seus figurantes e penosamente, sobreviverem.

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