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Política

RIDENDO CASTIGAT MORES

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Eça de Queiroz e Fernando Pessoa: o humor perspicaz na crítica ao poder político

A utilização do humor como uma ferramenta de intervenção e crítica política tem origens bastante antigas. Na obra de Eça de Queiroz, por exemplo, encontramos uma crítica mordaz à sociedade política levada a cabo através de um humor perspicaz e assertivo. Veja-se o episódio d’Os Maias, habitualmente designado de “jantar em casa dos Gouvarinho”, onde o escritor faz sobressair a incapacidade, ignorância e deslumbramento da classe política dirigente, através da personagem do Conde de Gouvarinho, ministro do Reino. Algum tempo mais tarde, também Fernando Pessoa fez uso do humor para criticar ferozmente o Salazarismo. Veja-se o poema “António de Oliveira Salazar”, um texto carregado de ironia em que Pessoa lamenta a falta de liberdade.

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Foto: Escritores a Norte

José Vilhena: humor em tempos de censura

Também na linha da frente da luta pela liberdade esteve o incontornável nome do humor, José Vilhena. Escritor, pintor e cartoonista, socorreu-se do humor de diversas formas, quer durante, quer após a ditadura. Iniciou a sua carreira em 1955 com o jornal “O mundo ri”. Nos anos 60 editou vários livros de bolso humorísticos, muitos dos quais censurados e apreendidos. Foi preso três vezes pela PIDE.

Rui Zink, que o conheceu e com ele privou, descreveu-o ao jornal Público como “o grande humorista transversal de antes de 25 de Abril”, acrescentando que Vilhena “teve a importância do Herman e dos Gato Fedorento juntos”.

Mas mesmo após o fim da ditadura, Vilhena teve problemas com a censura. Em 1974, pouco tempo depois de ser criada a sua publicação “Gaiola aberta”, esta esteve suspensa durante 30 dias, fruto da aprovação de uma nova Lei da Imprensa, que considerou que a revista tratou “com menos respeito do que o devido um chefe de Estado estrangeiro”, em alusão a uma fotomontagem em que a Rainha de Inglaterra aparecia semi-nua.

José Vilhena morreu em 2015 deixando atrás de si um enormíssimo trabalho de intervenção e crítica política. Além das publicações que deixou editadas, existe ainda um site dedicado à sua obra, “O incorrigível e manhoso”, apelido que lhe foi dado pela Comissão de Censura do Estado Novo, num dos muitos relatórios sobre as suas publicações. De acordo com o site, “Vilhena foi sempre o «one man show». Escrevia, desenhava, fazia as fotomontagens, paginava e editava (…). A sua obra, relembrada de vez em quando, não tem o destaque que merece e é em grande parte desconhecida das novas gerações. O seu humor (…) é contudo ainda actual em muitos aspectos”.

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Cartoon: José Vilhena

Depois de One Man Show, One Woman Show

Bastante mais conhecida do público jovem é Cátia Domingues, ou One Woman Show, que apresenta a rubrica humorística “Jogo do Tanso” no Canal Q. Em vídeos de poucos minutos, analisa os piores comentários feitos no Facebook sobre um determinado assunto. Já analisou os mais variados temas, desde os comentários às tatuagens de Ibrahimovic a comentários homofóbicos sobre o ataque terrorista em Orlando. Falou da questão dos refugiados e até da liberdade de expressão. Cátia Domingues tem desmontado problemas sociais e consequentemente políticos, muito presentes no debate atual. Em entrevista ao blogue “Escrever Gay”, Cátia afirmou que ”o acto ou arte (…) de fazer comédia pode ter inúmeros propósitos, e quem decide é quem a faz”. Afirma ter optado “por um humor mais activista, de intervenção”, mas há dias em que lhe apetece “falar da Quinta da TVI ou fazer uma piada com a morte ou uma tragédia qualquer”.

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Foto: Canal Q

Ricardo Araújo Pereira

Quem também tem teorizado sobre a doença, o sofrimento e a morte é Ricardo Araújo Pereira. Licenciado em jornalismo e amante das palavras, escreveu para vários programas do Herman José e participou no programa “Levanta-te e ri” da SIC. Em 2003 iniciou o projeto “Gato Fedorento” com mais três humoristas portugueses, que se tornou uma referência humorística. Actualmente escreve para a revista Visão, integra o painel do Governo Sombra e escreve e protagoniza a rubrica “Mixórdia de Temáticas” na Rádio Comercial. Em dezembro deste ano, lançou o livro ”A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar”, onde procura discutir a forma como hoje se vê e pensa o humor. Em todos os seus trabalhos Ricardo Araújo Pereira faz uso do humor para abordar questões atuais e pertinentes também para o debate político, tais como o casamento gay e a precariedade no trabalho.

Em entrevista ao Público, Ricardo Araújo Pereira afirmou que “fazer rir ou pensar não é mutuamente exclusivo (…) faço as duas coisas ao mesmo tempo, até para saber do que me rio”.

“O que me deixa perplexo é que haja humoristas que dizem: Não, eu mais do que fazer rir, desejo fazer pensar. Isso deixa-me sempre doido, acho que é preciso ter um ego muito especial para estar convencido de que a nossa missão neste planeta é fazer os outros pensar (…). Confesso que não tenho essa arrogância, interessa-me fazer os outros rir”, declarou o humorista.

O certo é que, querendo ou não, os seus textos fazem pensar. Ricardo confessa que lhe foi dito que o sketch dos Gato Fedorento “É proibido mas pode-se fazer”, em alusão à posição do professor Marcelo Rebelo de Sousa sobre o referendo ao aborto, teve um papel decisivo no próprio referendo. Não acredita que o humor tenha essa força, respondendo que “a existir algum poder no humor, é incontrolável”. “Pode ter tido algum efeito, só que eu não sei qual foi e não o escrevi para que tivesse”, admite.

Mas ainda que não escreva para mudar mentalidades, a verdade é que o tem feito. Quem o diz é a Associação Ilga Portugal, que em 2009 lhe atribuiu o prémio Arco-Íris por ter contribuído “de forma significativa para a luta contra a discriminação, com base na orientação sexual e na identidade de género”.  A crónica que lhe valeu este galardão chama-se “O culto da homossexualidade em Zezé Camarinha” e… também lhe valeu um processo judicial.

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Foto: Enric Vives-Rubio

Mas por falar noutra coisa…

Quem nunca foi processado, mas é cada vez mais mediático nas suas declarações, é o humorista Guilherme Duarte, autor do blogue “Por falar noutra coisa”. Um blogue com opiniões “raramente sérias, na maioria das vezes parvas”, segundo o próprio.

Mas se as opiniões não são sérias, são sobre assuntos sérios. No seu blogue já abordou o tema das touradas, assunto debatido por várias vezes no Parlamento Português, a homofobia, entre muitos outros. O seu blogue inclui ainda um separador com textos subordinados ao tema “Política”, onde encontramos textos irónicos sobre temas que vão desde Donald Trump ao Brexit.

Em entrevista ao JUP, o humorista contou qual o seu objectivo ao abordar certos temas:  “Na maioria dos textos o meu foco é principalmente que as pessoas se riam. Se no meio conseguir passar a minha opinião e fazer as pessoas pensarem um pouco sobre o tema, é um bónus, mas não é o meu foco. Acho que quando os humoristas se começam a focar mais em fazer pensar as pessoas, acabam por perder a piada”.

Sobre o poder do humor, considera que por si só não tem capacidade para mudar mentalidades e consequentemente o quadro político-legislativo.

“Acho que uma piada tem impacto no momento, mas depois passa e ninguém, mesmo que concorde com a opinião de um humorista, leva a sério o que eles dizem e ainda bem. Acho que o humor pode mudar a sociedade, mas não são os humoristas que o vão conseguir. Mas se uma sociedade se souber rir de si isso mostra que as pessoas são inteligentes e estão de bem consigo e com a vida e nesse sentido ficará melhor.”

Questionado acerca do artigo “10 argumentos a favor das touradas” e se considerava que tinha contribuído para a tomada de consciência da sociedade, responde que “gostava de pensar que sim, mas acho que é só presunção minha ao pensar que alguém liga ao que digo. Acho que é um tema tão enraizado e duvido que haja adeptos de touradas que depois de lerem o texto fiquem a pensar – Epá, este gajo até tem razão. Podem, talvez, ficar a perceber melhor o porquê das outras pessoas não gostarem, e os seus argumentos, e isso pode levar a um debate mais saudável. Uma das razões pelas quais fiz esse texto foi porque vejo gente burra dos dois lados da barricada. Muitos dos anti-tourada não sabem passar a sua visão e isso é meio caminho andado para não se chegar a lado nenhum. Pode ser que um puto de 13 ou 14 anos que tenha lido tenha mudado de opinião e passe a achar que a tourada não faz sentido. Pode ser que sim”.

Acerca da relação entre o humor e a política, Guilherme explica que “a sátira política sempre esteve presente e não é por acaso que os humoristas são muitas vezes censurados em países em que a liberdade de expressão e opinião não é muito valorizada”. Por fim, considera que o humor é uma arma, mas “uma arma social, para nos darmos com os outros, para arranjar namoradas e para aliviar o sofrimento”.

Termina com sarcasmo: “Nunca nenhum ditador, governo, ou que seja, caiu por uma boa piada. O Charlie Hebdo tinha piadas, mas os outros tinham AKs 47. Se o humor for uma arma é uma espécie de corta-unhas”.

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Foto: Maluco Beleza

André Carrilho: o lápis ao serviço do humor e da política

André Carrilho é um dos mais conhecidos cartoonistas portugueses. Colabora com o Diário de Notícias, com o “The New Yorker”, com a “Vanity Fair” e com a “New York Magazine”.

Em entrevista à Renascença, falou sobre o Charlie Hebdo e sobre o trabalho dos cartoonistas, afirmando que “sempre que nos tentam obrigar a calar, é aí que a gente tenta falar mais” e que, muitas vezes, “as pessoas confundem sátira com intolerância”. Ao blogue GreatDesign, contou que as suas ilustrações políticas chateiam algumas pessoas. Contou que o seu maior problema foi com a embaixada de Israel em Lisboa, quando fez um cartoon que os deixou furiosos. Acrescentou ainda que, normalmente, as pessoas que ficam mais irritadas são os fundamentalistas religiosos, independentemente da religião. Alguns dos seus desenhos com conteúdo político podem ser encontrados no seu site.

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Cartoon: André Carrilho

Jovem Conservador de Direita

Quem também se sobressai no humor é a personagem fictícia Jovem Conservador de Direita. A caminhar para os 40 mil seguidores, é um fenómeno das redes sociais e cronista do Jornal i. Recentemente lançou o livro “A Era do Doutor – Retrato do génio que vai salvar Portugal”. Afirma-se candidato à liderança do PSD, planeando anexar o CDS

Em entrevista ao JUP e questionado acerca do que é o humor, o Jovem disse acreditar que “é uma ferramenta para vulgarizar ideias que são sérias e que devem ser tratadas de forma séria”. Afirma que a sua página é “anti-humor”, pretendendo, com ela, “combater o humor que existe à volta da política”.

Será que o humor pode ser um instrumento ao serviço da liberdade? Para o Jovem Conservador de Direita, a resposta é óbvia: “Claro que não. O humor é castrador da liberdade. A liberdade está na verdade, está na retórica verdadeira, na retórica séria. O humor é um subterfúgio, é o beco da liberdade de expressão”. Para si, “a liberdade democrática faz-se de armários e liberdade pura. Armários na questão da homossexualidade, do sexo e do humor. Tudo o resto, liberdade”.

O JUP questionou ao autoproclamado futuro líder do PSD qual o papel do humor na sociedade atual, ao que o Jovem elucidou: “Eu reduzo o humor ao papel que o Ministério da Cultura devia ter em Portugal: não devia ser um Ministério, devia ser uma sala, num vão de escada. Porque não é essencial para que o mundo evolua.”

“Veja-se estas eleições nos EUA. O Dr. Donald Trump é o candidato mais satirizado de sempre. Valeu de alguma coisa o humor? Ele foi eleito. Valeu para lhe dar visibilidade, para impossibilitar a sua eleição não. Portanto, o humor é uma arma pouco eficaz.”

O Jovem Conservador de Direita terminou a entrevista com o TOP 3 dos melhores humoristas portugueses: ‘’Em primeiro lugar, o Dr. Fernando Mendes, depois o Dr. Vasco Santana, que ainda hoje nos faz rir, seja através da gravação dos filmes dele, seja através das imitações do Dr. César Mourão, e por fim o Dr. Topo Gigio, um grande humorista de Direita.’’

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Foto: João Silva/Jornal i

Em suma, o humor pode posicionar-se mais perto ou mais distante da política, conforme a opinião de cada pessoa. O certo é que ao longo da história se têm cruzado muitas vezes – umas mais propositadas, outras mais casuais, umas mais inconvenientes, outras mais harmoniosas.

No fundo, seja o humor “um corta-unhas”, uma “forma de vulgarizar ideias que são sérias”, uma ferramenta de intervenção, ou nada disto, a verdade é que, como disse o poeta francês, Jean de Santeuil, “ridendo castigat mores”, ou “a rir se castigam os costumes”.