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Política

QuidJUP: O dever de sigilo

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Fonte: Jornal Económico

No âmbito deste artigo será feita uma explanação sobre a relevância do segredo profissional e os seus diversos regimes, nomeadamente no âmbito da recusa de depoimento.

Quem deve realizar dever de sigilo e quais os seus tipos?

O legislador faz uma enunciação das pessoas que têm o dever de segredo profissional no art. 135º do Código de Processo Penal. Por conseguinte, têm a obrigação de guardar segredo, entre outros, os ministros de religião e de confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas e os membros das instituições de crédito (artigo 135º, nº1 do CPP). Para além destes, existem outras profissões que também estão vinculadas a este dever, através de leis avulsas, como é o caso dos psicólogos, enfermeiros e solicitadores. 

O segredo profissional que o legislador assegura tem em vista a tutela da confiança e da funcionalidade no exercício de determinadas profissões, cargos ou funções. Será este o sentido para a existência do dever de segredo profissional

Todas as pessoas que por lei estejam vinculadas ao segredo profissional podem recusar a prestação de depoimento relativamente às matérias abrangidas pelo segredo. No entanto, o artigo 135º não trata apenas de um direito de recusa de depoimento, mas também configura um dever de sigilo penalmente sancionado (artigo 195º Código Penal).

O segredo profissional que o legislador assegura tem em vista a tutela da confiança e da funcionalidade no exercício de determinadas profissões, cargos ou funções. Ora, ninguém iria confidenciar com um advogado se soubesse que seria possível que esse profissional fosse chamado a tribunal para testemunhar contra o seu cliente. Esta situação tornaria impraticável o exercício da profissão de advogado. Será este o sentido para a existência do dever de segredo profissional.

A lei também impõe deveres de sigilo penalmente sancionados quando estiver em causa o sigilo de funcionários (artigo 136º do CPP e 383º do CP) e o segredo de estado (artigo 137º do CPP).

A maior consequência do dever de sigilo talvez seja a possibilidade concedida a certos profissionais de se absterem de prestar depoimento relativamente a matérias abrangidas pelo segredo profissional. Sendo assim, podemos distinguir três espécies de segredo profissional distintas:

  • Regime ordinário de segredo profissional 
  • Regime de segredo religioso 
  • Regime de segredo bancário 

Regime ordinário de segredo profissional

Este regime está divido em dois incidentes.

O primeiro incidente é a legitimidade da escusa.  Vamos verificar se a pessoa é de facto titular de uma profissão a quem é imposto um dever de segredo e se os factos do qual é chamado a prestar declarações caem no âmbito do segredo a que essa profissão está sujeita. Por outras palavras, é preciso indagar se a testemunha exerce uma das profissões vinculadas ao dever de sigilo e se os factos pelos quais a pessoa foi chamada a testemunhar são suscetíveis de violar esse dever. Por exemplo, um advogado está sujeito ao segredo profissional dos factos a que tenha acesso no exercício das suas funções, porém, se a razão por detrás desse advogado ter sido chamado a depor for simplesmente porque assistiu a um crime ser cometido, não existe aqui um dever de segredo relativamente a esses factos. Pela simples razão da pessoa ser advogada não significa, desde logo, o dever de recusa de depoimento. Será sempre necessário que se corra o risco de violar o dever de sigilo no caso da pessoa ser chamada a prestar depoimento.

Na hipótese de se concluir que a escusa é ilegítima, o tribunal ordena a prestação do depoimento (artigo 135º nº2 CPP). A determinação no sentido de se prestar depoimento tem de ser feita por um juiz. 

Diferentemente, se a escusa for declarada legítima passa-se ao segundo momento que é o de verificação da justificação da escusa. Neste momento, verifica-se se a escusa está justificada à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante. Sendo assim, temos de considerar a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e necessidade de proteção de bens jurídicos (artigo 135º, nº3 do CPP). Se a escusa, mesmo sendo legítima, não se encontrar justificada, será ordenada pelo juiz a prestação do depoimento com quebra do segredo profissional. Neste caso será necessária a intervenção de um juiz de uma instância superior.

O legislador manda atender sempre ao organismo representativo da profissão. No caso dos advogados este organismo será a Ordem dos Advogados; no caso dos médicos, a Ordem dos Médicos; e no caso dos psicólogos, a Ordem dos Psicólogos. Relativamente aos advogados coloca-se a questão de saber se o tribunal fica vinculado ou não pelo parecer da Ordem dos Advogados. Desta forma, estatui o artigo 92º, nº1 do Estatuto da Ordem dos Advogados:

«O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

  1. a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
  2. b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
  3. c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
  4. d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
  5. e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
  6. f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.»

Este artigo salienta a importância do segredo profissional, nomeadamente relativamente à profissão de advogado.

A lei declara no artigo 135º nº4 do Código de Processo Penal que «A decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável». O estatuto da Ordem dos Advogados refere que a competência para levantar o segredo cabe ao Presidente do Conselho Distrital da Ordem, podendo a sua decisão ser objeto de recurso para o Bastonário da Ordem dos Advogados. Já a decisão do Bastonário é vinculativa. Por conseguinte, este regime prevê que a decisão do Bastonário é definitiva e vincula. 

Regime do Segredo Religioso 

Fonte: Diocese de Campo Limpo

Este regime é mais fortemente protegido do que o anterior. 

Se um ministro religioso conhece dos factos no exercício da sua profissão, ele não pode ser obrigado a prestar declarações, independentemente da gravidade do crime. No caso do ministro do culto invocar um segredo religioso para se escusar ao depoimento, as autoridades de perseguição penal vão apenas verificar da legitimidade dessa escusa, isto é, vão verificar se a pessoa é, de facto, ministro de alguma religião ou algum culto e se a matéria de que é chamado a responder cabe no âmbito de tutela desse segredo de confissão que ao ministro é reconhecido. Uma vez verificada a ilegitimidade da escusa, este segredo é inquebrável. Deste modo, se a conclusão for positiva então não há forma de ultrapassar essa escusa, pois está aqui em causa a proteção da liberdade religiosa e da liberdade de consciência, que são formas de tutela da liberdade de pensamento.

Se um ministro religioso conhece dos factos no exercício da sua profissão, ele não pode ser obrigado a prestar declarações, independentemente da gravidade do crime.

Em virtude do que foi dito, não pode um padre ser obrigado a prestar depoimento em tribunal, no que concerne ao arguido ter admitido o cometimento de um crime em sede de confissão. O padre está abrangido pelo artigo 135º do Código de Processo Penal, podendo escusar-se a depor.

Segredo bancário

Até 2010 o segredo bancário seguia o regime do segredo previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal, mas em 2010 introduziu-se a alínea d) do artigo 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e passou a prever-se que as matérias cobertas por segredo bancário podem ser reveladas às autoridades judiciárias no âmbito de um inquérito penal.

A decisão, por força da Lei nº 36/2010, passa a competir a qualquer autoridade judicial (Ministério Público ou Juiz). Desta forma, tratando-se de segredo bancário, pode o próprio Ministério Público determinar a prestação das informações com quebra de segredo, o que implica a eliminação da reserva de juiz nesta matéria e a eliminação de um incidente em duas fases, ou seja, já não se separa a matéria da legitimidade da escusa da matéria da justificação da escusa. 

Se o dever de sigilo não existisse seria impossível o exercício adequado de determinadas profissões em que é imperativa a existência de uma exposição verdadeira dos factos por parte da pessoa para com o profissional

Sendo assim, para que a pessoa seja obrigada a depor será necessário que o Ministério Público, após uma ponderação, que tem de ser fundamentada, entenda que os interesses de perseguição penal se sobrepõem aos interesses de reserva de segredo. Concluímos, deste modo, que o dever de sigilo pode se consubstanciar numa recusa de depoimento, numa recusa de prestar declarações, estando, assim, acautelada a funcionalidade do exercício de determinadas profissões. 

Se o dever de sigilo não existisse seria impossível o exercício adequado de determinadas profissões em que é imperativa a existência de uma exposição verdadeira dos factos por parte da pessoa para com o profissional. Hoje em dia, o segredo mais acautelado ainda é o segredo religioso, embora se coloque cada vez mais a questão de ser apropriado, à luz de uma interpretação atualista, equiparar o dever de segredo dos psiquiatras ao segredo religioso, devido à maior proteção exercida sobre este último.

Artigo da autoria de Isa Machado. Revisto por Marco Matos e José Milheiro.