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Crónica

O Brasil não está pronto para a foto de Marcelo Rebelo de Sousa

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Na fila do supermercado, de máscara de proteção e a um metro e meio de distância de todos, ele pacientemente espera a sua vez para pagar a compra de utensílios básicos e necessários de cada dia. Em tons azuis, moletom, calça e máscara, o protagonista desta história faz tudo soar mais poético e impactante: o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, foi visto a fazer compras no Continente e fez de um episódio comum, um ato extraordinário.

Sim. É só isso. O presidente foi flagrado num ato quotidiano e a foto, divulgada no Twitter, causou alvoroço na internet e, sobretudo, no Brasil.  Com milhares de compartilhamentos e uma confusão que embaraça os miolos, muitos brasileiros, acostumados a ver um presidente como um rei – monarca, inacessível, idolatrado ou totalmente odiado – não compreendem como é possível Marcelo Rebelo de Sousa estar num ambiente tão banal, assim, entre cidadãos comuns, sem ser importunado, e, ainda – o que é mais desconcertante para quem tem Bolsonaro como governante – respeitando as diretrizes de precaução e higiene contra o novo coronavírus.

Não foi nada fácil. Porque, por mais que a imagem represente um momento corriqueiro e tenha passado de maneira trivial e indiferente para os portugueses, a foto carrega mensagens e fere o ego, já debilitado, do brasileiro. A calmaria do presidente e dos cidadãos à sua volta grita o óbvio em silêncio: presidente é uma pessoa como qualquer outra. Não é deus, não é herói e não é mito – sendo este último o termo utilizado por bolsonaristas para referirem-se ao atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Cada pixel da imagem invade a alma de quem inverte o poder de um cargo com uma coroa dourada de quem o assume. É duro assumir que pode haver uma realidade diferente quando alguns olhos choram a ver candidatos e ex-presidentes. Não há preparo emocional para enxergar que políticos não são deuses e sim pessoas que servem a administração do Estado, e não que se servem da administração do Estado – ou ao menos é assim que deveria ser. Mas quem sabe um dia depois de mais fotos como essa, o Brasil possa vê-lo assim, cobrá-lo assim, e parar com a mania grotesca de endeusar políticos e de esperar, em vão, por um salvador da pátria.

Não há salvador, não há heróis, nem magos. Política fantasiada não é mágica, é truque. No fanatismo político perde-se o senso crítico para exigir, julgar ou trocar um governo, perde-se a possibilidade de ser um cidadão atuante e torna-se mero espectador de um show de horrores e pior, como apontou Noam Chomsky, vira participante de um rebanho desorientado que, sem compreender como e porquê, segue as diretrizes ordenadas por um líder, enquanto este, protegido pela escolta do populismo, se afasta dos deveres em prol da sociedade e orienta-se meramente pelos interesses pessoais.