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Crítica

REGRESSO A CASA, DE ZHANG YIMOU

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A relação desapaixonada de Zhang Yimou com a Revolução Cultural Chinesa continua em Regresso a Casa, um melodrama romântico que abusa demais do ritmo ponderoso da sua história, e que não aproveita o potencial completo das suas bem delineadas personagens. Lu Yanchi (Chen Daoming) é um professor dissidente que foge de um dos campos de trabalho maoístas para se reunir com a sua mulher, Feng Wanyu (a sempre deslumbrante Gong Li, mais conhecida por estas terras pelo seu papel em Miami Vice (2006)). Corrompida pela verborreia de Estado, Dandan, a filha do casal, delata o seu pai às autoridades, causando um incidente violento que separa a família durante três longos anos.

Este primeiro ato constrói um clímax emocional que se torna o ponto alto do filme e que Yimou tenta então replicar com diminuído impacto. O realizador move a relação triangular da família de Yanshi como autênticas peças de xadrez, aproveitando o contexto de época para tecer um curto capítulo que introduz o espectador aos protagonistas da história sem grandes diálogos expositivos ou outros engenhos menos interessantes. Aqui, Yimou mostra saber como exercer a regra seminal do cinema (show, don’t tell) sem assaltar a audiência com pormenores visuais: as cores desbotadas da província chinesa entram em contraste com o rosa e com o azul dos trajes académicos de Dandan, que aspira ser dançarina. Através desta distinção, percebemos de imediato a sua importância para a história, e a forma como somos conduzidos pelas cenas em que Dandan percorre de bicos de pés um salão de dança denota de imediato a afinidade desta rapariga para com o governo de Mao.

De facto, as aspirações artísticas de Dandan (que, notavelmente, são suprimidas com a progressão do enredo) estabelecem quase que uma dimensão poética em Regresso a Casa, uma preocupação em criar um diálogo, ainda que comedido, com a opressão e censura governamental da época. Guerra e paz vão sempre de mão em mão e Yimou usa o acto de dançar como um acto de guerra: as bailarinas carregam espingardas nas mãos, apontam-nas para o vazio no meio de piruetas e de graciosos saltos pelo ar. Faz lembrar as aventuras marciais que caracterizaram os filmes mais reconhecidos internacionalmente do cineasta, dentro do género de wuxia, como Herói (2002) e O Segredo dos Punhais Voadores (2004). Estes produziam as suas cenas de guerra como um passo de dança extremamente bem dado, encontrando o sublime na violência, a arte na guerra. Regresso a Casa, por outro lado, ambiciona a paz emocional das suas personagens, em constante opressão pelas instituições que as separam.

Então decorrem três anos, a Revolução Cultural termina e Yanchi é libertado. O professor volta a casa, mas encontra notas espalhadas pelas divisões, lembretes de algo que não entende de imediato. Quando se apercebe que Feng desenvolveu uma amnésia selectiva (ou de curto prazo) nos três anos que se sucederam, já está a ser expulso de casa pela mulher que ama mas que não o reconhece. Dandan havia recortado a face do pai de todas as fotografias de família, pelo que por mais que quisesse provar a sua aparência, não havia nenhum registo visual dela. Yanchi passa o resto do filme a tentar reaproximar-se de Feng, à espera de que algo nas suas interações despolete o amor que durante tanto tempo os uniu, e que agora destrói as suas vidas como um memento maldito da passada revolução.

Com efeito, a amnésia de Feng torna-se mais metafórica do que propriamente literal: Yimou sugere uma leitura alegórica da relação quebrada deste casal, que não se consegue reconciliar com as suas vidas passadas, lançando um olhar magoado sob a liderança do país por Mao Tsé-Tung. Os seus filmes lidam sempre de alguma forma com a emoção humana, seja ela a raiva, a inveja ou a paixão, tornando universais as peripécias das suas personagens. Tal concedeu-lhe uma posição bastante privilegiada por estas bandas ocidentais, em comparação com os seus colegas da quinta geração de cineastas chineses. Apesar disto, o realizador nunca esquece o contexto social proveniente da localização temporal das suas narrativas, tenham elas a envergadura de um thriller, de um drama ou de um filme de artes marciais.

Como tal, o contexto é tudo em Regresso a Casa, mas talvez seja isso que, no geral, mais o prejudique. Os detalhes de época são imaculados, e o uso de iluminação natural constrói uma ambiência melancólica que projeta para o espetador o estado de espírito das personagens. Mas Yimou parece usar estes artifícios como uma muleta para as deficiências do enredo, caindo no erro de esperar que a beleza da cinematografia ou a métrica dos planos façam esquecer o ritmo vacilante das cenas, ou as tangentes desinteressantes do segundo acto que acabam por não ir a lado de nenhum, escravas como estão ao romance central entre Feng e Yanchi. À parte da meia hora inicial, esta décima-nona longa-metragem de Zhang Yimou tenta ser mais do que aquilo que, em essência, é: um drama romântico demasiado sentimentalista.

Gong Li, no entanto, quase que perdoa todos os defeitos de Regresso a Casa. No seu papel como Feng, a atriz rouba a atenção da audiência sempre que está em cena, dominando o olhar com a dor nos seus olhos, a amnésia a transparecer na rigidez dos seus braços, no sorriso hirto que por vezes escapa dos seus lábios. Gong Li captura na perfeição os maneirismos daquela mulher perdida no tempo e na sua própria mente, desnudando com subtileza o interior destroçado do seu exterior inexpressivo.

No fim, Regresso a Casa distingue-se das restantes ofertas do realizador chinês ao funcionar mais como um throwback a uma era passada de Hollywood, repleto de um aparatoso sentimentalismo que é raro nos dias que correm. Por lástima, a mão pesada da alegoria suprime por completo os aspectos mais interessantes do filme, salvo somente pela representação impecável de Gong Li.

 

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