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Crítica

A saga “The Matrix”: um ano desde…o fim?

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The Matrix possui, sem dúvida alguma, um lugar reservado na história do cinema. Eu sei, eu sei, sem dúvida que esta é uma opinião forte e talvez se fosse apenas minha seria até questionável. Contudo, basta dedicar alguns segundos a pesquisas na internet relacionadas com o tema para inferir que, na prática, este é um juízo partilhado por muitas mais pessoas para além de mim. Ainda hoje, 23 anos depois do original The Matrix, a franquia é fonte de inspiração para inúmeros outros artistas, independentemente do ramo a que pertençam.

Tamanho é o valor desta obra que levou um tal de Quentin Tarantino a selecionar o clássico do fim do século passado entre os 20 melhores filmes no período entre 1992-2009, lista esta que elaborou em 2009 à Sky Movies. No entanto, se esta sua opinião reforça o impacto da obra, também nos deixa com uma outra questão em mãos. Isto porque, quando chega ao momento de abordar o produto das irmãs Lana e Lilly Wachowski (que escreveram e dirigiram o filme), o reconhecido diretor acrescenta que The Matrix constava em segundo na tal seleção por ele feita, mas que havia descido na sua consideração em função do seu desagrado para com as sequelas. E é assim, caros leitores, que chegamos ao cerne da questão. Porque, se é verdade que The Matrix é consensualmente apreciado pelo público, também é verdade que se formou e generalizou a ideia de que os seus sucessores não estiveram sequer perto de fazer justiça ao primeiro.

Isto por si só não significa grande coisa. De um modo geral, penso que esta mesma lógica se aplica à maioria sagas, o que é compreensível na medida em que existem diversos fatores que podem prejudicar a nossa revisita a um domínio querido, tais como: a falta do elemento-surpresa, a criação de expectativas que não são correspondidas, a falta de substância que permita a redação de um bom argumento, pressões dos estúdios e por aí vai. No entanto, o caso de The Matrix é particular na medida em que este teve uma queda tão abrupta que levou ao eclipse quase total de apreço pela franquia.

Fazendo uma análise objetiva, The Matrix (1999) faturou cerca de 470 milhões dólares com um orçamento de 63 milhões. Já o último título, The Matrix Resurrections (2021), fez apenas 157 milhões de dólares com o triplo do investimento (190 milhões dólares). Para se ter a noção, o original tinha feito mais do que esse valor… só nos EUA e no Canadá. Sendo totalmente honesto, à data do lançamento do mais recente capítulo o mundo estava em plena afetação pela Covid-19, e houve ainda a forte concorrência de Homem-Aranha: Sem Volta a Casa. Mas uma obra com estes custos que tenha gerado tão pouca receita terá sido de um prejuízo imenso para os envolvidos, e reflete bem o abismo no qual o franchise tropeçou. Pior só mesmo se for a sequela de O Exorcista (1973), que conseguiu ser má ao ponto de afastar parte do elenco, dos diretores e passar de 2 Óscares ganhos (e mais de 8 nomeações) para… os tops das piores obras alguma vez feitas. Posto tudo isto, convido-vos para um passeio pelos códigos da Matrix, com visitas à sua glória, e também ao seu fracasso.

Ascensão meteórica (1999)

Keanu Reeves é o grande protagonista da saga. Foto: D.R.

Foi há mais de duas décadas que Matrix estreou nos cinemas. Logo à partida esta informação pode assustar alguns que, ao contrário de mim, tenham assistido à longa-metragem há alguns aninhos atrás. Posso afirmar desde já que não sou particularmente fã de obras antigas. Na minha pequena cabeça pensante, adequa-se, neste caso, a lógica dos recordes: existem para ser batidos. Simplificando, aquilo que pretendo passar é que, ainda que reconheça o mérito dos cinematógrafos que criaram/aprimoraram determinadas técnicas, tenho dificuldade em estimar da mesma forma que audiência da altura, na medida em que hoje existem recursos que não haviam no passado e permitem que essas mesmas inovações sejam evoluídas e aprimoradas. No entanto, e, não obstante ao que acabei de escrever, foi com um sorriso de orelha a orelha que me apercebi imediatamente da intemporalidade de Matrix

Mas afinal, o que raios é Matrix? A fita, que se enquadra nos géneros de ficção científica e ação, introduz Thomas Anderson (Keanu Reeves), um mero engenheiro informático e hacker, a uma realidade alternativa, que lhe é apresentada como sendo a verdadeira e datará por volta de 2199. Criado por máquinas autoconscientes que utilizam o calor e a energia elétrica proveniente dos corpos humanos como fonte de energia, a este universo dá-se o nome de Matrix, onde Neo (como é aqui conhecido Thomas Anderson), terá o futuro do mundo nas suas mãos.

Ok, ok, mas afinal, por que motivo foi tão aclamado? Bem, essa resposta é extremamente fácil de dar. The Matrix entrega uma narrativa que, ainda que seja simples, é concisa, minuciosa e polida com uma paixão e dedicação muito acima da média por parte das manas Wachowski, que se entregaram de corpo e alma ao projeto, prestando atenção aos detalhes e inspirando-se nas referências certas para catapultar a obra de sua autoria e conferir-lhe uma multiplicidade de camadas notável.

Quando se diz que a obra é simples, muitas vezes interpreta-se essa apreciação como pejorativa, mas este não é de todo o caso. Muitas vezes, executar bem o básico é o maior desafio que há. Neste caso em concreto, Neo é um sujeito que tem poderes ímpares e inigualáveis, pelo que facilmente poderia estar em causa o seu propósito, mas a direção contorna isto ao ligar os pontos de forma coesa, demonstrando as fragilidades e inseguranças de alguém que é subitamente confrontado com um cosmos novo e diferente daquele em que habitava e onde tem a responsabilidade de estar à altura do que o destino lhe reserva. E The Matrix é isto e muito, muito mais.

Começando pelos visuais “like a boss” das personagens, que exibem os já ilustres óculos de sol e uma indumentária pautada pela escolha predominante de tons de preto, passando pela trilha sonora, que se revela eletrizante e icónica, e terminando na fotografia, que desempenha um papel discreto e ainda assim brilhante e preciso a contar história que nos é difundida. Tudo para que o resultado seja uma linguagem extremamente cool e a mais autoral e distinta possível. A atenção aos detalhes para mim é absolutamente deliciosa, e verifica-se em vários aspetos como: o facto de a imagem estar sob um filtro verde quando a ação decorre na Matrix, ou azul quando se passa no mundo “real”, os jogos de palavras com os nomes das personagens (a título de exemplo, Neo é um angrama de “one” ou “um” em português, que remete ao facto de Neo ser conhecido como “The One” ou “O Escolhido” e à lógica matemática subjacente à matriz), os efeitos visuais, as coreografias das cenas de pancadaria, etc..

E, tal como já havia adiantado, não tomem Matrix como um filme unidimensional. São várias as referências filosóficas e religiosas que enriquecem a nossa experiência. Da mesma forma que a obra apresenta Neo a esta realidade, ela desafia-nos a questionar sobre o que nos rodeia. No âmbito da dicotomia entre a realidade e a utopia, tornam-se evidentes as homenagens a Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll, referenciada diretamente), bem como a Alegoria da Caverna (Platão) e o texto Simulacres et Simulation (Jean Baudrillard). É ainda de mencionar a popularização que se dá no que respeita ao efeito “bullet time”, após este ter sido sublimemente utilizado e aprimorado nesta fita.

Por último, mas não menos importante, lembrar o elenco que é funcional, mas não menos emblemático que o conjunto da obra. Keanu Reeves como Neo é eficaz, não sendo particularmente expressivo, ao passo que Carrie-Anne Moss elabora uma composição aprazível, contrapondo de forma elegante a impetuosidade e a ternura da personagem Trinity, e estabelecendo uma química invejável com o seu par romântico. Por sua vez, Laurence Fishburne tempera de forma igualmente satisfatória a sapiência e experiência de Morpheus com a admiração que sente por Neo. Para fechar o elenco, Hugo Weaving entrega uma performance de altíssimo nível como Agente Smith, que estará certamente entre as suas melhores, ao transpirar carisma e veemência.

Desta forma, The Matrix rapidamente acumulou fãs ao redor do mundo e tornou-se um filme cult, tendo arrecadado 4 galardões dos Óscares nas categorias de: Melhor Montagem, Melhor Som, Melhores Efeitos Visuais e Melhores Efeitos Sonoros. A criação de um universo soberbo e a amplitude de caminhos a explorar depois do primeiro filme clamavam por uma sequela, que chegou em dose dupla durante o ano de 2003. Contudo, e ao contrário do que se podia esperar, não demorou até os elogios se tornarem críticas…

A queda (2003)

As sequelas não fizeram jus ao original, segundo o público e a crítica. Foto: D.R.

Depois de quatro anos à espera, os milhões de fãs que The Matrix havia conquistado foram presenteados com não uma, mas duas sequelas, de forma a encerrar a trilogia. No entanto, pode dizer-se que o presente chegou envenenado, uma vez que a receção a ambas as sequências foi marcada pela deceção tanto do público como da crítica. O desapontamento foi tal que, para muitos, diminuiu a admiração pelo universo e danificou a experiência global em torno da franquia. Ainda assim, eu gostaria de desconstruir um pouco esta ideia geral de que “ah, o primeiro é que vale a pena, o resto não presta”. Não que eu não compreenda essa ótica, mas pelo facto de que, ao meu ver, o desastre não ser assim tão grande. É grande, mas nem tanto.

Começando por The Matrix Reloaded, acredito que esta obra ainda seja bastante aceitável. Se olharmos aos números, terá sido o capítulo mais rentável de todos, tendo obtido cerca de 742 milhões de dólares face ao investimento de 150 milhões, um lucro bastante considerável, portanto. Para além disso, a película mantém o elenco do seu antecessor (que, por sua vez, continua extremamente competente) e contém frenéticas cenas de ação de cortar a respiração, com coreografias bem compostas e uma banda sonora sui generis a elevar toda a tensão. No final de contas, creio que nesta obra ainda reside muito do espírito que nos fez apaixonar pelo original. Contudo, penso também que o desagrado se justifica tendo em vista que a sequela nunca consegue ter a profundidade e a desenvoltura do seu antecessor.

The Matrix colocou a audiência em contacto com um cosmos cujas vias de exploração eram quase infinitas, o que elevou as expectativas do público para um patamar extremamente elevado. Não apenas isso, mas também conseguiu ampliar o seu impacto ao estender o seu alcance para o plano psíquico, dado que introduz conceitos filosóficos e religiosos. E tanto por uma via como por outra, The Matrix Reloaded nunca consegue satisfazer, ou pelo menos, não por completo, os parâmetros cuja fasquia tinha sido muitíssimo elevada por The Matrix. Reforço que, pessoalmente, ainda considero uma experiência valiosa e digna, sobretudo porque ainda é uma narrativa coesa, com primorosas cenas de ação e um final poético, mas não deixo de reconhecer que deixa a desejar em certos aspetos.

E se The Matrix Reloaded fica abaixo da barra, o que dizer de The Matrix Revolutions? Lançada no mesmo ano, esta longa-metragem foi ainda menos bem-recebida que a anterior. Os problemas que surgiram em The Matrix Reloaded foram agravados, e os pontos do enredo estão tão mal ligados que parece deixar a sensação de falta de substância. Não apenas isso, mas os efeitos especiais, especialmente as imagens geradas por computador (CGI), ficaram muito aquém do esperado, ainda para mais quando falamos da sequela de uma obra que ganhou o Óscar na categoria de Melhor Efeitos Visuais! Certas maquilhagens também me pareceram grotescas e inverosímeis, o que aliado a um argumento com falhas e material sem a qualidade necessária, me deixou um enorme amargo de boca, em última análise.

Escrito isto, este é aquele momento em que vocês se estarão a perguntar (ou então não) “mas não ias desconstruir a ideia de que as sequências eram um desastre?!?”. Ao que eu respondo sim… e não. Tal como disposto supra, eu subscrevo a ideia de que as sequelas estão abaixo do original. Contudo, ao passo que em The Matrix Reloaded destaquei as fantásticas cenas de ação e um final louvável, em The Matrix Revolutions eu tenho de aplaudir a prestação enorme de Hugo Weaving que segura o enredo tanto quanto pode, através de uma atuação estupenda. Se o confronto final tem significado e uma réstia de fôlego do primeiro Matrix, isso é porque o ator o conseguiu, juntamente com uma cinematografia sólida em transmitir um clima épico.

Em termos de bilheteira, a conclusão da trilogia rendeu cerca de 427 milhões de dólares tendo tido o mesmo custo de produção do anterior. Resultado que, ainda que seja relativamente positivo, reflete o descontentamento do público, ao ter sido a fita que menos obteve receita das três que compõem o franchise. Nem The Matrix Reloaded, nem The Matrix Revolutions conseguiram alcançar os feitos do original nas grandes premiações, não constando sequer entre os nomeados.

O precipício e… o fim? (2021)

A última aposta da saga foi considerada um fracasso. Foto: D.R.

Lembram-se de quando vos disse que a audiência estava de rastos com o rumo da trilogia? E quando disse que o Hugo Weaving tinha, parcialmente, salvo o terceiro filme? Ou quando elogiei a performance de Laurence Fishburne e o seu icónico Morpheus? Ah, e recordam-se de ter dito mesmo há pouco que a pior bilheteira era a de The Matrix Revolutions? Pois bem, esqueçam tudo isso, porque a Warner Bros. também esqueceu.

Há precisamente 12 meses atrás, foi lançado nas salas de cinema de quase todo o mundo aquele que tinha o intuito de vir a ser o título revitalizador da franquiaThe Matrix Resurrections. E sim, já puderam perceber. Não há Laurence Fishburne, nem Hugo Weaving, o entusiasmo revelou-se praticamente nulo e tudo isto levou aos belos resultados na bilheteira que referi logo na introdução. Pior, não satisfeitos eu afastar os atores, tiveram coragem de os substituir!

Muito se especula sobre a produção deste filme. Diz-se que a sede do estúdio em rentabilizar o buzz à volta da saga não estava em sintonia com a intenção das irmãs Wachowski, que não pretendiam voltar a dirigir uma obra da franquia. Ainda assim, teoriza-se que o receio relativo à possibilidade de ser selecionada outra pessoa para realizar o projeto fez Lana Wachowski avançar, pela primeira vez sem a ajuda da sua irmã, Lilly Wachowski. De qualquer maneira, a nós resta-nos avaliar aquilo que nos é mostrado, seja lá o que for que esteja a acontecer nos bastidores.

Neste quarto capítulo, Thomas Anderson (Keanu Reeves) retoma à sua vida ordinária de programador, duas décadas depois dos acontecimentos de The Matrix Revolutions, estando a colaborar com um terapeuta com o objetivo de tratar a sua mente, que andava a ser invadida por memórias… estranhas. Paralelamente, conhece uma mulher que lhe faz lembrar Trinity (Carrie-Anne Moss), mas nenhum deles se reconhece. Tudo muda, no entanto, quando é confrontado por uma nova versão de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II) e Bugs (Jessica Henwick) para voltar à Matrix e libertar todos de lá.

Quando eu falo de precipício e do fim, reparem que deixo sempre um ponto de interrogação. Na verdade, eu também não vejo este filme como uma verdadeira catástrofe, muito embora volte a não conseguir estar ao nível da primeira longa-metragem. Sim, é verdade que certos atores foram embora e não são substituídos com o mesmo primor. No entanto, eu consigo aferir certos méritos neste filme. A cinematografia é competente, o argumento é promissor, o final é, uma vez mais, bem conseguido e, de certa forma, os elementos que caracterizam Matrix estão lá. Contudo, uma vez mais o argumento revela-se frágil com o desenrolar do filme. Além do mais, a descaracterização das personagens e a despreocupação por parte da diretora muito distantes do carinho que mencionei acima aquando do primeiro filme voltam a fazer passar a sensação de vazio e falta de propósito em revisitar este universo. As cenas de ação estão demasiado picotadas e nada características em comparação ao êxtase que as dos outros filmes provocavam. A trilha sonora volta a estar em harmonia com o projeto, mas desta vez não é por bons motivos. Ela é desinspirada como tudo o resto. Sem fulgor, sem chama. O mundo que nasceu da criatividade e se distinguiu por ser tão autoral, tornou-se em pouco mais do que… genérico. E é genuinamente triste perceber que uma franquia que tinha tanto para dar nunca se conseguiu provar outra vez, apesar de já lá irem três oportunidades.

O elenco é, ainda assim, competente. Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss reavivam de forma agradável o romance que conquistou os fãs. Yahya Abdul-Mateen II consegue dar o seu toque a Morpheus, ainda que sem o protagonismo de antes. Jessica Henwick como Bugs é esforçada e acrescenta, na medida do possível. Jonathan Groff ficou com a tarefa ingrata de substituir Hugo Weaving como Agente Smith, e não consegue estar ao nível do mesmo. Por último, destaque ainda para Neil Patrick Harris que, também cumpre no papel que lhe foi atribuído, ainda que sem deslumbrar.

Apesar da receção mista, o quarto título conseguiu uma indicação aos prémios BAFTA na categoria de Efeitos Visuais Especiais, categoria onde saiu por cima Duna.

E agora?

Nada está anunciado, nem confirmado até ao momento. Os números desencorajadores e a aparente falta de entusiasmo, tanto do público como das irmãs Wachowski, levam a crer que dificilmente haverá uma quinta produção.

No entanto, quem sabe o que poderá acontecer. Para a história ficará sempre um primeiro filme icónico, complementada por uma sensação agridoce no que respeita às obras seguintes. Quanto a mim, foi um prazer acompanhar-vos neste passeio pelos códigos da Matrix. Hoje é o aniversário de algo que poderia ser promissor e revitalizar um universo tão querido pelos cinéfilos mas que ficou apenas pela promessa.

Por João Pedro Pereira