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Crónica

O Penálti de Baggio

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Isto é água.

Tal como os peixes de Foster Wallace, ignoramos a constatação óbvia daquilo que nos rodeia. Daquilo que, apesar de fazer de nós quem somos, é imutável. O nosso meio inato, a nossa natureza. Simplesmente porque é difícil nomear aquilo que, simplesmente, é o que é. Aquilo que sempre foi e que nunca poderia ser outra coisa. Não gastamos tempo no banal. Assim, quando o peixe sábio nos perguntou como estava a água, a resposta que aflorou os nossos lábios tomou a forma de uma questão. O que raio é água?

David Foster Wallace enforcou-se em 2008. Reconheço o absurdo de tentar vender os ensinamentos de vida de um homem que pôs fim à sua. Um indivíduo reconhecidamente infeliz. Imperfeito. De prosa exageradamente detalhada. Propositadamente confusa. Os traços dos grandes de um ofício que a nossa legião teima em perpetuar. Demasiadas vezes replicar, a troco da felicidade pessoal. No entanto, sabendo que a única verdade absoluta é que, de uma maneira ou outra, todos acabamos por falhar a vida, a transgressão de Foster Wallace não será pior que as nossas.

A nossa experiência leva-nos a cometer um erro de observação. Empiricamente, concluímos que o mundo gira à nossa volta. Não existe uma experiência mais vívida e mais real do que a nossa. Pelo menos à qual tenhamos acesso. A fila no supermercado arrasta-se para nos irritar. O relógio avaria-se para nos atrasar. O carro que quase nos bateu tinha o objetivo de nos matar. E o egocentrismo é o combustível da nossa miséria. O mundo conspira contra nós e não há nada que possamos fazer. Perdidos na rotina. Irritados com os que nos rodeiam. Os que, por existirem, nos afastam da tranquilidade que merecemos.

Odeio quando copiam as minhas experiências. Sinto-me roubado quando descobrem uma banda depois de mim. Quando falam daquele livro que já li. Quando chegam, aparentemente sozinhos, às mesmas conclusões a que eu cheguei meses antes. Sinto-me vilipendiado, como se me tivessem apagado as luzes da ribalta, o meu direito à sombra maior. Todas as ideias corretas no Universo são as minhas. Todas as boas experiências pertencem-me. A música, a banda, o livro. Deviam ser meus. Após deixar que essa ira irracional se dissipe, eis a realidade. Estou errado.

O passo mais difícil a dar é aceitar que não temos razão. Que todos os outros são como nós. Não somos especiais. Estão presos na fila do supermercado porque acabaram de sair do trabalho e precisavam de ovos, tal como todos os outros na procissão interminável para adorar a caixa registadora. O relógio atrasou-se por termos ignorado o aviso no manual de instruções que recomendava trocar a pilha um ano antes. O condutor do carro que quase nos bateu talvez tivesse adormecido, mas o crime não teria motivos pessoais. Tal como os nossos amigos que descobriram a banda como nós, por mero acaso. Não têm menos direito a gostar deles.

O paradoxo da sanidade é esse mesmo. Temos de nos forçar a desafiar aquilo que anos de experiência nos levaram a concluir. É difícil. A única explicação que nos deixava, ainda que miseráveis, satisfeitos. Que atribuía a culpa das coisas tristes, de todo o mal que nos afeta, a uma grande conspiração imaginária dos figurantes da nossa vida. E todo o bem à nossa postura estoica, decerto uma recompensa do karma, perante os desafios que enfrentamos.

Em 1994, um italiano falhava um penálti em Pasadena. É curioso como são os acontecimentos que não vivi, senão por memórias de uma lente, que me marcam. Não tenho dúvidas que terão sido as ondas geradas por aquele penálti falhado a agitar o peixe sábio do oceano wallaciano. Milhões de italianos confiaram no número 10 para bater a grande penalidade. Para manter vivas as esperanças de mais um Mundial. Roberto Baggio teve no pé direito a materialização do seu maior sonho. Uma vitória que não seria apenas sua. E chutou por cima.

Isto é água.

A fotografia de Baggio é a representação do mantra de Foster Wallace replicada ao infinito. A constatação que, mesmo no momento em que tudo dependeria unicamente de nós, aquele momento em que não podemos culpar mais ninguém, falhamos. É um erro honesto. O erro dele é um erro como os nossos, mas num palco demasiado grande. Em condições normais, amaldiçoaríamos as gerações futuras de um homem que nos desviasse assim do prémio que a vida nos deveria ter garantido. Não somos capazes de o fazer a Il Divin Codino.

O amor universal a Baggio transcende a falta de lucidez típica do futebol. Excede as sucessivas histórias de superação, as cicatrizes nos joelhos. É mais pura do que a Bola de Ouro ou os 317 gritos de golo, os incontáveis defesas que ficaram pelo chão. O nosso amor por Baggio é o mesmo que temos pelas coisas imperfeitas, irremediavelmente partidas. Fraturadas. É o alívio da irresponsabilidade cósmica, por termos falhado e o planeta ter continuado, indiferente, a sua órbita em torno do sol.

Baggio chutou por cima.

Como eu. Como todos na fila maçadora do supermercado. Unidos pelo falhanço coletivo e sucessivo, incansáveis na busca do momento de glória que pode nunca mais chegar. E, quando desperdiçado, não mais se repetirá. Nunca fica mais fácil, por muito que se recitem as palavras mágicas, tal como uma oração. A lucidez manifesta-se em amuletos estranhos. Os meus são três peixes falantes de um homem deprimido e um budista de rabo-de-cavalo.

 

Artigo da autoria de Francisco Caetano