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Crónica

NA AMÉRICA LATINA #8

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Entrada na Bolívia, (numa passagem pela fronteira bem mais rápida do que a peruana), a primeira paragem foi Copacabana, não a brasileira, mas a do lago Titicaca. Lá, formámos quase imediatamente um grupo de viajantes que se iria manter por três dias: eu, Mike, americano, Benjamin e Emille, franceses, Jorge, colombiano e Pablo, espanhol. Jorge e Pablo viajavam de bicicleta: Pablo levava consigo um espetáculo de marionetas que ia fazendo nas escolas dos sítios por onde passava como forma de levar alguma cultura a crianças que vivem em lugares inóspitos. Jorge viajava com latas de tinta, pintando paredes em troca de alimentação. Juntos, formavam um par muito divertido e que discutia de forma acesa a política da América do Sul. Jorge tinha um ódio muito vincado contra os colonizadores espanhóis.

Sem consciência disso, chegámos  a Copacabana no exato dia de uma das maiores festas do ano: a festa de Santa Cruz. Um desfile enorme, encabeçado por uma banda, de cerca de 70 pessoas, com instrumentos de sopro e tambores, que tocavam algo que fazia lembrar uma mistura de pasodoble e música de Emir Kusturica. Atrás da banda seguiam mulheres vestidas como no Carnaval brasileiro e homens com grandes máscaras de monstros. A música, ruidosa e contagiante fez com que nos juntássemos ao desfile, copiando  a dança bastante simples que todos faziam.

O problema para nós, que não tínhamos reservado alojamento, foi que a festa fez com que as hospedarias ficassem completamente cheias. Apanhámos, então, um barco para a Isla del Sol, em pleno Lago Titicaca. Enquanto procurávamos um lugar para dormir, conhecemos Eusébio, um senhor com dentes de ouro, que nos ofereceu o quarto do filho para dormirmos e um lugar para os que tinham uma tenda, a poderem montar.

Esta ilha é muito diferente das peruanas. Em primeiro lugar porque é natural, e não artificial. É possível percorrê-la em 5 horas de caminhada. Montes verdes que sobem e descem com ruínas incas espalhadas, praias de areia branca junto ao lago, (tão grande e cristalino que faz lembrar o mar) e crianças que brincam com os barcos a remo deixados na praia. Almoçámos trutas deliciosas pescadas no lago. Quando o sol começava a pôr-se e a luz a ficar perfeita, na ilha, só se ouviam os pássaros e as ovelhas. Os camponeses, sempre carregados de fardos pesadíssimos, sorriam, muito simpáticos. Assistir ao pôr do sol no lago, desde o cimo de uma colina, com um bom  vinho tinto boliviano e uma guitarra foi magnífico.

La Paz é uma cidade a 3600 metros de altitude, situada num vale no coração dos Andes. Que cresce, e cresce, nas colinas e em todos os lugares onde seja possível construir. Os subúrbios são basicamente casas de tijolo por pintar, construídas à pressa para albergar o “boom” demográfico. Há muito movimento, muita poluição, sempre gente e comida na rua. Pequenos mercados, com os clássicos souvenirs turísticos e, coisa até agora única, um mercado de bruxaria, com fetos de lama, várias “poções” com fins medicinais ou amorosos e, até, um vinho do Porto especial para fazer magia.

Muitas das ruas coloniais têm um aspeto abandonado e fantasmagórico, adivinhando-se, só de olhar a fachada, as teias de aranha e a poeira que acolhem. A praça central, com a assembleia, a catedral e o palácio do governo, é a parte mais bonita, também por ser a única impecavelmente conservada e que escapa ao movimento e à poluição com o seu jardim e a sua fonte central.

Ficámos todos num hostel cheio de mochileiros. Pablo e Jorge, de bicicleta, ficaram para trás, porque o que para nós foi uma viagem de 5 horas de autocarro foi, para eles, três dias de bicicleta.

O plano para os dias seguintes não era bem claro: quantos dias ficaria em La Paz, se seguiria para norte ou para sul.

E enquanto estava relaxada no hostel, de repente, surgiu uma possibilidade em que nunca tinha refletido. Encontrei um outro francês, já conhecido de outras paragens, e que surge com olhos brilhantes e um grande sorriso: “Tomei uma decisão, mudei de planos: vou subir ao Huayna Potosi (uma montanha perto de La Paz, de 6088 metros de altitude). É uma oportunidade única de estar acima de 6000 metros que não posso deixar escapar.  Já falei com um guia, vou fazê-lo.”

Eu, meia atordoada com aquele entusiasmo todo, comecei também a ficar com os olhos brilhantes e um sorriso na cara:” E se eu também fosse? Não era esta para mim também uma única oportunidade? Porque não?”. Nem pensei duas vezes. Não refleti no que seria preciso fazer, no esforço físico necessário, no frio, na altitude, nada. Ia fazê-lo, ia escalar a montanha.

Fui falar com Mike, e convenci-o a vir comigo. Passámos o dia seguinte a tratar de todos os preparativos, a testar o material e, sobretudo, a preparar-nos psicologicamente.

Começou a aventura. Uma carrinha deixou-nos no campo base e o objetivo do primeiro dia era chegar ao campo alto, a 5130 metros de altitude. Logo no primeiro dia, comecei a aperceber-me de que devia ter refletido um pouco mais na empreitada. As 3 horas de subida com todo o material  às costas, (picareta, crampões, botas de neve pesadíssimas, toda a roupa quente) foram horríveis.  A paisagem era fantástica, parecia quase lunar: um glaciar muito branco, milhares de pedregulhos que pareciam ervas daninhas num deserto, o nevoeiro branco, as lagoas que exalavam fumo fantasmagórico. E o majestoso condor, que aparecia elegantíssimo a sobrevoar lentamente as montanhas, com as suas asas enormes.

Quando chegámos ao campo alto, o alívio de pousar todas as coisas foi enorme. Passámos a tarde a tentar dormir, já que a noite seguinte seria dura. A preparação incluía muito descanso, chocolates e, acima de tudo, água, muita água, para evitar problemas com a altitude.

Apesar de ter tentado toda a tarde e início da noite, acabei por não conseguir dormir quase nada. Acordámos à meia noite, e aí começaram os preparativos: vestir camadas e camadas de roupa, preparar as botas e as cordas, verificar as pilhas das lanternas de cabeça, comer qualquer coisa. E à 1h saímos para a montanha.

Estava muito frio, muito vento e  muito escuro. Mal dei o primeiro passo, percebi que as minhas pernas ainda estavam doridas da caminhada do dia anterior. E, para piorar, a primeira meia hora era uma subida bem inclinada. Quando a terminámos, fizemos a primeira paragem para comer chocolate e beber água. Só faltavam 5 horas. E quão penosas iam ser essas 5 horas. Perdi a conta às vezes em que pensei voltar para trás. O escuro, o cansaço, o frio, eram brutais. Tivemos subidas tão inclinadas que tínhamos de espetar bem os crampões e a picareta para não cair. Pelo caminho, fomos assistindo a várias desistências. O escuro só era interrompido pelas luzes laranja que vinham de La Paz que dormia. Passos lentos e curtos, respiração ofegante da reduzida quantidade de oxigénio, em frente era o caminho que parecia interminável. As horas e a distância eram completamente desconhecidas, andávamos no abismo escuro. Entre as 4h e as 6h da manhã, atingimos o sofrimento máximo: a lua desaparecera, o sol ainda não nascera, a escuridão, o frio e o cansaço estavam no ponto máximo. E, de repente, o sol começa a nascer. Ao princípio, mostrava-se na forma de uma faixa, dum cor de laranja intenso, no céu completamente preto. E, pouco a pouco, começava a iluminar as coisas à sua volta. Primeiro as nuvens, depois as montanhas, depois a neve. Nós continuávamos a andar sem parar. Até que, com o Sol, começámos a ver o pico. E à medida que nos aproximávamos começámos a perceber que não estava tão longe como parecia. Ao vê-lo assim tão perto, ganhei uma energia que ainda não tinha tido, comecei a dar passos maiores, a espetar a picareta com vigor e a esquecer o cansaço. “Eu vou conseguir!” Os últimos 80 metros foram os mais assustadores. Agora já iluminados, víamos que estávamos numa crista da montanha de 20 centímetros de largura no ponto mais largo, com um precipício de rochas de cada lado. O truque era olhar para cima e pensar no pico, e não no caminho. E quando finalmente chegámos… Para além de ter sido a coisa mais difícil que já fiz e de sentir que tinha superado todos os meus limites à custa de uma enorme força de vontade, foi a vista mais bonita que já vi. O Sol nascia. Iluminava, de cor de laranja, as nuvens em baixo. À nossa volta, víamos toda a cordilheira nevada, e picos e picos sem fim. La Paz e o Lago Titicaca estavam em baixo. O silêncio era total. Sentia-me no topo do mundo. Nunca me tinha sentido tão cheia e a transbordar de emoções. Tinha conseguido, tinha valido a pena. E tinha vivido para contá-lo.

A descida, foi outra história. Já não havia o pico para olhar nem aquela energia que, de repente, parecia ter-me abandonado. As pernas tremiam de cansaço e a crista assustadora continuava lá para ser descida. Foram duas as vezes em que tropecei e em que senti só ter sobrevivido porque tinha o Mike e o guia a segurar firmemente a corda. E não se pense que a descida é mais fácil que a subida. Para além do cansaço acumulado e do sol que se reflete na neve e que é muito forte, a neve escorrega, pelo que é preciso uma tensão constante nas pernas. A 100 metros do fim tive a primeira queda. Foi um tropeção sem nenhuma consequência, mas a exaustão levou-me às lágrimas. Cheguei, e dormi.

Só depois de umas boas horas de sono pude finalmente assimilar toda a aventura. E, agora que penso nisso, não podia estar mais feliz. Tudo sabe melhor se envolve a superação de tudo o que pensávamos ser capazes, e só eu sei quanto suei para conquistar esta montanha.

 

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