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Devaneios

Qual a dignidade da minha história?

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Eu lembro-me de quando um familiar me contou uma história da sua infância, passada em São Tomé, então colónia portuguesa, em que viu um negro ser chicoteado até perder as forças e cair no chão. Fiquei surpreendido e pensei que a pessoa em questão, devido à idade, estava a fabricar uma realidade que nunca existira. Só passados vários anos, e muito estudo, cheguei à conclusão que quem tinha fabricado uma imagem errónea da realidade colonial tinha sido eu, e que episódios como aquele eram frequentes nas roças de café nas décadas de 50 e 60.

Mas não era o único iludido. Há dias, organizei um questionário onde perguntava se o Estatuto do Indígena tinha existido. A pergunta era obviamente irónica, mas poucos souberam responder. Não posso culpar ninguém pela sua ignorância, porque, verdadeiramente, a culpa é de um sistema que não lhes soube instruir sobre o passado do seu país, e uma sociedade que persiste cega quanto a estes atos. A realidade é que eu, tanto como outros membros da comunidade de afrodescendentes, fui obrigado, através do estudo autónomo, a descobrir a minha própria história, tantas vezes regalada para segundo plano. Contudo, a minha história, a história dos meus pais, a história dos meus avós, tem todo o direito de ser tratada com o respeito e a dignidade que merece.

Hoje fala-se muito do que fazer com a História, mas não se fala dela.

A constante mitificação que se faz de certas pessoas retira-lhes a complexidade e torna-as bidimensionais, meros personagens em crónicas que ninguém já lê. É necessário rever, não ter medo de rever. Porque quando se criam mitos urbanos ou se constrói uma imagem falsa de certos personagens, é preciso rever.

E não deixo de me sentir desolado com certas atitudes que por vezes não contribuem para o avanço do estudo da História, por exemplo a negação dos factos passados, ou o deixar aglomerado uma série de atitudes irresponsáveis. Cresci com um gosto especial pela História, e cresci rodeado de docentes que incentivaram não só o mero decorar de datas, mas também a compreensão dos fatores que potenciaram certos acontecimentos – e aí, a ter um sentido crítico sobre a atuação de certos agentes, passados e presentes.

Na realidade a história é isso mesmo: compreender as engrenagens que, ao rodarem, potenciaram os factos que impactaram a humanidade.

E nesse estudo, não se pode retirar da equação instituições como a escravatura, que perduraram durante muito tempo na nossa sociedade. Em suma, todas as conversas podem e devem ser tidas na História: como o papel das mulheres, ou o tratamento de minorias. Nada pode ser ocultado, porque tudo e todos têm dignidade para ser lembrados. Caso contrário, o próprio “leigo”, que nada sabe sobre História e está habituado a uma versão romântica da mesma, pode cometer erros grosseiros.

Acabo com um exemplo pessoal: quando era adolescente, estava obcecado por um senhor chamado Luís XIV. Certo dia descobri, por parte da minha professora, que o quadro de que eu mais gostava dele era uma ficção. Tratava-se de um retrato feito em 1701, de Hyacinthe Rigaud, onde ele aparecia imponente, com um par de pernas desejável. Contudo, foi me revelado que o par de pernas era de um modelo, pois o monarca tinha graves problemas de saúde. Para além disso, a cabeleira que ostentava também era falsa, pois o rei sofria de calvície desde a juventude. Dito isto: não se deixem iludir pelo poder das imagens, muitas são uma mera “fata morgana” .

Artigo da autoria de Roberto Saraiva

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