Connect with us

Desporto

CAMPEONATO DO MUNDO: GUERRA ENTRE NAÇÕES, PAZ ENTRE OS HOMENS

Published

on

David Guimarães

David Guimarães

Todos os atletas, mais vincadamente os grandes campeões, odeiam perder, abominam a derrota. Quando o insucesso acontece, é como um luto de “morte”, embora se fale apenas de uma “perda” desportiva. Sempre que defendem o seu país, a sua identidade nacional, a derrota ganha contornos dramáticos. No campeonato do Mundo, joga-se pela pátria, representa-se os seus conterrâneos, unindo-se um povo aos seus “ 11 embaixadores em campo”. Esta competição desportiva propicia um elo único entre o “eu” e o “outro”, diluindo-se em “nós”. Cada jogo opõe duas equipas, “nós” contra “eles”. Os seleccionados são movidos pela inspiração e desejos dos seus milhões de concidadãos na procura de um final glorioso. De um vasto universo emerge um pequeno número de eleitos, “os melhores”, os “heróis” que defendem a sua gente. Cada toque na bola no terreno de jogo é de uma responsabilidade tremenda, visto extravasar o espaço físico do estádio. Os jogadores espelham o país, são modelos e ídolos de juventude. “Enviados” e “ungidos” pelo povo para defender as cores da terra natal. Não estão “sozinhos em campo”, milhões de compatriotas ganham e perdem com eles. Portanto não há como fraquejar, enfraquecer ou desistir. Nem se dar ao luxo de averbar, sequer imaginar, uma derrota. Só a conquista da taça ou uma campanha brilhante faz jus à história e cultura de uma nação, que é sempre tida como grandiosa e pujante. Apenas dessa forma se faz “existir” um país e se perpetua a sua identidade ancestral.

O futebol é uma realidade social propensa a uma imagética de guerra coadjuvada por uma linguagem de terminologia belicista. Como no campo de batalha, é preciso “fazer qualquer tipo de sacrifício pelos colegas”, “morrer em campo”, “batalhar sem rendição”. O hino nacional, canção “combustível”, é entoado antes de cada duelo. O choro é muitas vezes inevitável nos jogadores, quando irmanados por 80 mil adeptos a cantar a plenos pulmões. Uma encenação que permite uma vibração que transcende o indivíduo. Sente-se, num arrepio, o pulsar da Nação.

Começa o jogo. Somos “nós” contra “eles”, numa batalha colectiva onde “ esmagam” ou são “esmagados”, uma guerra onde “matam” ou são “mortos”. Não importa quão grande ou forte é o adversário, “lutarão” até à exaustão para o vencer. Pondo em risco a sua integridade física, o atleta magoar-se-á. Se necessário for, lesionar-se-á, partirá ossos, passará por cirurgias. Estoicamente recuperará da sua “máscara” de dor, ressurgirá, erguendo-se do chão, volta ao activo, continuando a luta. A sua bravura é de soldado, a sua aura de herói.

Guerrear sempre fez parte do ADN humano. Lutar por comida, combater por água, batalhar por territórios. No desporto competimos uns com os outros. A actividade desportiva reflecte a natureza humana. Encontramos no desporto e nas suas diferentes formas de expressão um meio de eleger quem é o melhor. Há esse espírito animal: quem vai “reinar”?

Esta quinta-feira, os olhos e os corações do mundo estarão voltados para o Brasil. Trinta e duas selecções irão disputar o Campeonato do Mundo. É um período de grande festa internacional do desporto. Deseja-se um tempo de celebração, graças ao futebol, da competição leal e da convivência pacífica entre os povos. É uma oportunidade de revigorarmos os ideais humanistas de Pierre de Coubertin. Valores de paz e tolerância, de inclusão, de aceitação da diversidade. Pretende-se um evento que despreze todas as formas de preconceito e contribua para um saudável entendimento entre os povos. Como é que conseguirá, então, o humanismo imperar através desta batalha de nações? Terá o desporto, mais concretamente o futebol, esse poder?

O desporto estimula os instintos mais primitivos do ser humano e desperta a sua essência enquanto indivíduo. O Homem tem propensão para acções tão simples como correr, saltar ou acertar numa bola. O futebol nasce de necessidades fundamentais que todos sentimos: conviver, criar laços, competir, defender uma identidade comum. Todos os mamíferos brincam, mas só a nossa espécie conta os pontos. As manifestações desportivas são semelhantes às actividades lúdicas da criança que um dia todos fomos. O prazer de movimentar o corpo dá-nos uma consciência de liberdade, só experimentada através da mais simples e pura expressão do desporto.

Nas actividades desportivas de alta competição, o maior desejo não é o de vencer o outro, mas de se superar, de vencer os seus limites. Faz parte da natureza humana querer ser sempre melhor, mais forte, visar um aprimoramento individual. Todos pretendem alcançar a perfeição e o desporto dá-lhes a oportunidade de mostrar capacidades e força de carácter. Ir mais além descobrindo novos limites, desafiando-os através do empenho e determinação.

Estes sentimentos e comportamentos são transversais a todos. Não são “americanos” nem “iranianos”. Gera-se uma união em torno do jogo. Pessoas por todo o mundo, de todas as idades, culturas e contextos sociais, partilham um amor profundo pelo desporto rei. Apesar do seu belicismo tão vincado e directo, o verdadeiro espírito desportivo relativiza e dimensiona equilibradamente as diferenças e os antagonismos que lhe são inerentes. Revelando o melhor dos sentimentos e da natureza humana, permite ultrapassar barreiras de “raça”, de religião, de nacionalidade.

De um impulso primitivo aos maiores palcos do mundo, o futebol é entendido por milhões de pessoas em todas as culturas, é uma linguagem universal que apela inegavelmente às nossas diferenças mas, sobretudo, ao que nos une.

Quando o árbitro apitar para a final do Mundial, dando a conhecer o destinatário da taça, uma explosão de emoções diametralmente opostas irá ocorrer. O vencedor exultará alegremente, o vencido chorará numa tristeza incontrolável. O futebol aglutina, sobredimensionado em alguns momentos, os estados de espírito que acompanham toda a nossa existência.

Quando o êxtase do vencedor entrecruzar olhares com o destroçado derrotado, o mesmo pensamento irá surgir: “Podia ser eu ali”. Há uma empatia imediata, uma comoção fraterna, um reconhecimento do outro na sua plenitude, só possível naquele contexto. As nações jogam umas contra as outras, mas os homens que as representam, jogam juntos.

Save

Continue Reading
8 Comments

8 Comments

  1. António Pais

    13 Jun 2014 at 1:04

    Uma boa descrição das paixões que o desporto em geral representa, e como pode ser um factor positivo de transformação e desenvolvimento humano, sobretudo quando os seus intervenientes tornam-se referências humanas nos vários níveis de actuação, não só no âmbito desportivo..

    Continua assim, os teus artigos tem uma qualidade de escrita acima da média, nota-se que tens prazer naquilo que escreves, abraços 🙂

  2. António Mesquita Guimarães

    15 Jun 2014 at 17:58

    Excelente artigo David! A beleza do desporto fica bem patente neste texto.

    Abraço

  3. Rita Mesquita Guimarães

    15 Jun 2014 at 18:06

    Mais um belíssimo texto. O teu melhor trabalho até agora! Muitos muitos parabéns.

    Beijinho!

  4. Rui Sousa Pinto

    16 Jun 2014 at 14:43

    Muitos parabéns, David. O futebol é, realmente, um enorme gerador de emoções, nem sempre as mais racionais, mas sempre muito intensas.
    Abraço
    Rui

  5. Raquel Moreira

    16 Jun 2014 at 16:47

    Artigo muito bem elaborado. Fica patente como em pouco espaço se consegue fazer uma análise que aborda os pontos essenciais do que o desporto pode e deve ser para a humanidade.
    Muitos parabéns!

  6. Pedro Marques Pinto

    16 Jun 2014 at 20:56

    De facto, poderíamos dizer, numa metáfora arriscada, que o futebol, na cultura popular e mediática, é o substituo e ao mesmo tempo o prolongamento mais ou menos legítimo da guerra. No século XIX, alguns estadistas e militares tinham por hábito dizer que a guerra era a continuação da política. Seguindo esta linha de raciocínio, penso que estamos aptos, actualmente, a afirmar o mesmo acerca do futebol: repito, que este desporto (dominante?) é a consequência lógica daquilo que o homem discute nas assembleias, daquilo que o destrói nos campos de guerra. Mas há uma diferença fundamental, quase óbvia: no futebol não há feridos nem mortos, derramamento de sangue ou bombardeios indiscriminados sobre populações civis. No futebol não se constata o medo de morrer a qualquer instante. Mas a mentalidade militar, a linguagem bélica e a impulsividade da violência permanecem, como muito bem referes. A retórica, a propaganda, as claques de adeptos, os jogadores, os treinadores, os estádios, os árbitros, o espectáculo-em-si (em sentido hegeliano), tudo isto constitui a realidade ontológica de um mesmo cosmos, primordial e orgânica, a que nós homens costumamos designar por guerra, o mal necessário ao orgulho da nossa profana espécie. Será o futebol a representação de uma guerra pacífica? O futebol une ou desune, é motor de fraternidade e solidariedade social ou não passará de um simples entretenimento milionário alimentado pela oligarquia dos clubes, no fundo, empresas que sobrevivem à base da acumulação de capital? Promove a igualdade de oportunidades ou a desigualdade gritante de salários? A vitória e a derrota percorrem de um lado a outro a natureza do futebol e da guerra. O vencedor é coroado, o derrotado chora, mas vê o seu nome ser inscrito nas tábuas sagradas da história da FIFA. Considero a ideia de nação ou pátria demasiado complexas para serem traduzidas pelas acções desempenhadas por uma selecção de futebol dentro das quatro linhas. Mas quer queiramos quer não, o estádio de futebol converteu-se, no século XXI, na arena da diplomacia política entre as nações. Tal como a guerra assumiu o mesmo papel há dois séculos. Entre futebol e guerra, continuo a preferir o primeiro. Mas como dialéctica, nunca se sabe quando é que a segunda poderá implodir e dominar as razões. O ser humano tem a necessidade de concentrar a violência reprimida num objecto concreto. Esse objecto poderá ser uma bola de futebol, com certeza, e já não uma pessoa ou um grupo de pessoas. A bem da nossa salvação.

    Um abraço David

  7. Miguel Braga

    17 Jun 2014 at 19:35

    Palavras para quê? Este artigo não só é mais um exemplar de um artigo extremamente detalhado que relata uma realidade e define aspectos filosóficos e socias profundos e enraizados na nossa culturo, como também é o melhor alguma vez publicado por ti. Concordo plenamente com os argumentos prespicázes que teces neste artigo digno de aplauso. Para além disso, este artigo demonstra a potencialidade que terás no futuro se continuares assim. Se assim o fizeres ganharás por merecido mérito um lugar no pódio dos melhores cronistas num dos melhores jornais do País. Contiua assim… Um abraço.

  8. Nuno

    23 Jun 2014 at 16:12

    “Todos os mamíferos brincam, mas só a nossa espécie conta os pontos.”

    Frase muito bem conseguida.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *