Desporto
A PAIXÃO DE CRIS
Portugal foi eliminado do Mundial 2014. Uma participação sem brilho que desembocou numa eliminação justíssima. Na última jornada, a seleção precisava de vencer o Gana e “rezar” para que os Estados Unidos da América perdessem com a Alemanha. A “equipa das quinas” necessitava de recuperar de uma desvantagem de cinco “tentos” devido à “diferença de golos” desfavorável. Uma conjugação de resultados que possibilitaria a passagem seria, por exemplo, uma vitória “lusa” por 4-0 sobre os africanos e derrota dos americanos por 1-0, no outro jogo do grupo.
Depois do empate com os Estados Unidos a 2 “bolas” na partida da segunda jornada, a situação da selecção nacional ficou muito complicada. Depois do golo de Varela no último minuto, os portugueses suplicavam e acreditavam num “milagre”. O séquito de crentes do “Cristianismo Ronaldo” esperava que os “pés taumatúrgicos” do capitão da “equipa de todos nós” curassem a “moribunda” auto-estima portuguesa. Escalpelizemos as declarações efectuadas pelo craque, em jeito de balanço dos dois jogos, no rescaldo do embate contra os norte americanos:
“Se calhar os outros são melhores do que nós. Nunca pensei que podia ser campeão do mundo, sinceramente. Temos que ser humildes e reconhecer a capacidade que temos.”.
Seguidamente, proferiu uma mensagem “esperançosa” para o jogo com o Gana, digna do “messias luso contemporâneo” em que se transformou:
“Não sou hipócrita, digo o que penso. Pode acontecer, mas há seleções melhores do que nós. Há que levantar a cabeça, perceber que há melhores seleções do que a nossa e jogadores melhores do que nós.”.
Para culminar, avalia mediocremente a qualidade da sua “eclésia ”depreciando os seus “22 apóstolos”:
“Média, se calhar sim. Seria mentir da minha parte se dissesse que eramos uma selecção de top. Temos limitações, lesões, o Pepe, o Coentrão… Isso limita-nos bastante. Temos uma equipa limitadíssima. Sem estar ao melhor nível, não conseguimos competir com as equipas de top.”.
Estas declarações foram apreciadíssimas pelo “concílio ecuménico futebolístico”. Ronaldo “disse a verdade”, “não foi hipócrita”, “colocou o dedo da ferida”.
Permitam-me que recue ao “ano zero”, antes do jogo com a Alemanha para lermos a “profecia ronaldiana” sobre a “epopeia portuguesa”.
“A Alemanha é uma selecção muito forte, uma das melhores do mundo, uma das favoritas mas vamos dar o nosso melhor e tentar ganhar. Vamos entrar com o pé direito. O saldo dos jogos entre nós é favorável a eles mas, por exemplo, o Real Madrid também já não ganhava ao Bayern há muitos anos e isso mudou. Este vai ser o ano de Portugal. Amanhã começará a mudança.”.
Apesar desta “incongruência teologal”, CR7 pessoalizou um sentimento geral de comoção, pena, injustiça, pelo facto de tão “divino” jogador figurar numa seleção tão “mundana”. Ele era o “libertador profético” facinoramente entregue “por 22 judas” incompetentes rumo ao “calvário”.
Acabou o Mundial! Ronaldo não “trespassou o mar” com a “nau portuguesa”. Para os “fiéis” urge uma renovação, suplica-se a restruturação da equipa nacional guiada pelo “messias” Ronaldo. Na semana passada estava herético, hoje sinto-me ateu. O futebol português precisa efectivamente de uma nova “tábua de leis”. Apesar disso, lamento vaticinar que com este “Moisés” o “apocalipse lusitano” é uma inevitabilidade. Semanticamente desejado como “revelação”, na prática um prenúncio de “fim do mundo”.
Avé César!
O Brasil está apurado para os quartos-de-final do “seu querido” Mundial. A vitória nos penáltis sobre o Chile por 3-2, depois de um empate a uma bola no tempo regulamentar, permite a continuação do “sonho canarinho do hexa”.
O Brasil jogou no sistema de 4x3x3 com dois médios defensivos efectuando apenas uma alteração no onze. A saída de Paulinho por Fernandinho veio permitir um “volante” com maior participação ofensiva, mais capacidade de incorporação em espaços mais adiantados e melhor remate de meia distância. No último artigo, referi que Paulinho era “curto” para as exigências de segundo trinco, visto que Luiz Gustavo, “tanque posicional”, necessitava de emparelhar com um médio que acrescentasse capacidades diferentes à equipa. Scolari mexeu bem, numa alteração que deverá confirmar-se perene com o decorrer da competição. Tenho, ainda assim, uma divergência com o “Sargentão” já anteriormente manifestada. O Brasil não tem no seu modelo de jogo uma estratégia de pressão alta continuada. Embora tenha entrado muito pressionante, não manteve o encurtamento de espaços alto durante muito tempo. Não tem sido uma equipa muito dominadora, nem o quer ser. Scolari privilegia a ocupação de espaços num bloco médio/baixo. Está com algum receio, o que é compreensível, mas onde a equipa tem falhado mais, como se viu no momento do golo sofrido, é na primeira zona de construção, onde tem tentado sair com a bola controlada, perdendo-a, por vezes, em zonas comprometedoras.
O Chile foi um adversário dificílimo de “bater”. Manteve o “tradicional” 3x5x2 e condicionou muito o jogo do Brasil. O melhor período aconteceu à hora de jogo quando o “duplo pivot” Díaz-Aránguiz fechou bem à frente dos centrais e Gutiérrez, médio mais adiantado, condicionou a progressão de Fernandinho. Os laterais Isla e Mena “emprestaram” tremenda profundidade, conseguindo cruzamentos “venenosos”. Na frente, mais soltos, os “ases” Alexis e Vidal estiveram muito inspirados e obrigaram a grande desgaste da defensiva contrária.
Nos penáltis, o “salvador da pátria” foi o guarda-redes brasileiro Júlio César que defendeu duas grandes penalidades. A entrevista que deu no final do jogo em lágrimas é comovente. Em 2010 foi um dos réus da derrota do Escrete contra a Holanda por 2-1. Com este brilhante jogo conseguiu a redenção. Lacrimejando, afirmou que a sua felicidade era proporcionar uma grande festa no Brasil. Faltam três “degraus”. Que os “suba”, guiando o “império brasileiro” à glória.
Pedro Marques Pinto
4 Jul 2014 at 23:50
Caríssimo David,
Cá está um artigo de altíssima qualidade, digno de um qualquer jornal de referência. É interessante verificar que exploras muito bem a metáfora bíblico-religiosa-apocalíptica que, em parte, a selecção sebastianista portuguesa reivindicou para si neste mundial de futebol, uma empresa outra vez fracassada, à semelhança de trauma colectivo como Alcácer-Quibir. O desempenho desta selecção não teve, todavia, a maturidade suficiente para ser considerado um “trauma”, mas decerto que foi um desastre ou uma total desilusão, isto para quem acredita que o futebol veio substituir a religião como renovado ópio de um povo endividado e carente de glórias históricas. As afirmações “epopeicas” que Cristiano Ronaldo fez ao longo da prestação lusa neste mundial são irreais e contraditórias, o que só prova uma de duas coisas: ou reconhece que também os messias se enganam na sua missão redentora de prever grandes feitos para a nação escolhida; ou simplesmente prefere o lugar-comum à análise crítica do real.
O século XX aprendeu a dessacralizar os seus mitos. O século XXI começa a reinvocar a figura do messias, herói nacional ou ídolo popular da cultura de massas, capaz de instaurar no estádio de futebol o reino de deus que, no fundo, não passa de um simulacro da comovente comédia humana.
Saudações de um leitor lesionado
Maurício Moraes
5 Jul 2014 at 8:23
Equipas, como a Bélgica e a Costa Rica, não são melhores do que a de Portugal, mas tiveram muito mais ”raça“ e lá estão, e os ´´canarinhos´´ sem o seu Garrincha (pássaro muito ágil e veloz – Neymar) vai ´´penar mais.
Miguel Braga
6 Jul 2014 at 22:02
Neste artigo estupendo, expõe-se a verdade “nua e crua” do carácter pessoal no nosso capitão da seleção. Demonstra-se que não só a vontade do “CR” é volátil e que segue marés, como também a sua posição para com a seleção é um tanto ou quanto “fraca” quando comparada com a que tem no Real de Madrid. Aproveito este bitaite para sublinhar que a tua qualidade de escrita está a melhorar a cada artigo que leio. Espero que encontres num jornal como “A Bola” ou outros como o Público o teu merecido lugar como cronista. Um abraço.
Pedro Marques Pinto
8 Jul 2014 at 17:42
Caro amigo David,
Já que cunhaste de forma inteligente o conceito de Cristianismo-Ronaldo, pergunto-te: para quando uma reflexão sobre o messianismo-Neymar?
É uma proposta que deixo ao teu critério
Abraço e boas crónicas
Anabela Simão
10 Jul 2014 at 12:47
Bem escrito, como sempre e sarcástico como só o autor sabe ser…